Poemas destaques no portal Fazia Poesia | 1º trimestre de 2024
Confira os poemas que foram selecionados pela equipe editorial da Fazia Poesia
Alô, poetas!
Eis mais uma edição deste apanhado trimestral (e o primeiro do ano) dos poemas que foram publicados no portal. Este artigo é o resultado da leitura dos poemas dos meses de janeiro, fevereiro e março.
Toda escolha é, sim, uma perda e uma renúncia, mas teimamos nessa doideira e nesse clichê que é enxergar o lado cheio do copo: nada disso existiria sem os integrantes da Equipe de Poetas, que publicam com a gente, que nos dão esse voto de confiança. A todos e cada um, fica nosso sincero agradecimento por fazer da Fazia Poesia o que ela é: comunidade, troca, poesia.
Aos autores dos quinze poemas aqui selecionados (uma amostra singela mas poderosa dos muitos que publicamos), sintam-se sobretudo: porta-bandeiras de escola de samba; representantes e ecos de tantas outras vozes; partes integrantes de uma poesia contemporânea rica, diversa, viva, pulsante. Vocês são.
Com desejo de perpétuo devir e continuidade da poesia e sem mais delongas, faça-se luz na ribalta, holofote na passarela e tapete vermelho para o desfile, mas, principalmente, sensibilidade e coração aberto para conhecer mais dos poetas que escreveram os poemas aqui destacados.
Boa leitura!
Brincando de Adília
de Camis Martins
36 anos
criar músculos
diminuir o café
ficar em silêncio
sentir saudades da minha gata
21 anos
sair de casa
viver meu primeiro amor
não comprar mais queijo branco
ouvir Caetano em festas alternativas
10 anos
ter dois quartos
me dividir entre duas cidades
ver minha mãe chorar
ver meu pai chorar
não chorar
destino circular
lado a. a última vez que te vi
praia
noite violeta
onda de calor
brisa
uns latões de império
claro que eu conheço essa
um garoto de doze anos
quer mais cerveja
outra criança rola na areia
despreocupada
vejo no seu rosto o seu rosto
duas meninas apaixonadas
dançando lá longe
felicidade é boa assim
à distância
você diz
lado b. eu estou muito longe
florentin quer arranjar um emprego
violaine est une autre (eu também)
annaëlle descobre do que é feito o horizonte
alessandro deixa a música encontrá-lo
ele conta que há dois tipos de tubarão
o que te come por inteiro
e o que se arrepende
depois da primeira mordida
amparo pensa que é uma nuvem
ela é o sol
carolina usa as mesmas palavras
pra falar de mim e de seu pai
o pai dela
escritor
mesmo perto permanecia inalcançável
a mãe cuida do jardim
promessas de ano novo
em 2024
eu prometo
deixar que me olhem
falem o que quiserem falar
entendam o que quiserem entender
e que também gostem de mim
sem afeto
o afeto
quero deixar para a família
de passarinhos
que vive na minha garagem
e fazem piu-piu
toda vez que aciono o alarme do carro
ao chegar em casa
a casa
que dá para ver o pôr do sol
na hora de lavar
a sujeira do meu dia a dia
e dos anos
que passam tão rápido
quanto um vídeo do tiktok
o tiktok
que não me tocou ainda
prometo que vou desinstalar
só me deixa assistir
mais um vídeo
de como transformar a cozinha
pintando só o rejunte
o rejunte
que junta o piso
mais do que o dito amor
que deveria juntar
eu, você, as coisas que a gente sabe
as coisas que a gente não sabe
e as coisas que a gente acha que sabe
o sabe
aquele dia
em que eu disse que em 2023
eu correria 10 quilômetros
chegaria aos 54 quilos
e aí sim eu começaria a me amar?
não foi dessa vez
a vez
eu prometo
será em 2024
porque na fogueira do ano novo
eu vou queimar a preguiça
as desculpas
e todas as promessas
a muitas mãos
Temperar o feijão e
pensar nas mães mexicanas
Lavar o arroz e
sentir pelas filhas chinesas
Cortar a couve e
rezar pelas viúvas moçambicanas
Separar os gomos da laranja e
lembrar das meninas afegãs
Enfim, azedar a comida
bicho
de Natália Mota
não mais temer bicho nenhum
nem a teia
nem o ferrão
nem a mordida
nem o coração
ser o bicho
como o bicho
com garra
com chifre
com presa e asa
com oração
Desver
de Adriel Alves
Dever da retina é ver rotina
Tenho estudado o desver
Fio de poste, corda bamba de pássaro
Terreno baldio, flor de mato
Canteiro de rua, rio.
Tenho desvisto de tudo
Botado o olho para pensar
Vi detalhes como lupa
Vi as coisas como nunca
Toda vez ao caminhar.
Desver, ofício do poeta
Deixar de ser cego
O invisível é colírio
De trazer brilho à vista
Desver a rua como via.
justa
precisei de um pai
precisei de uma mãe
de carne
de leite
de ar
deu-se um jeito
precisei de um deus
precisei de uma mãe
de céu
de flor
de luz
choveu míngua
precisei de um professor
precisei de uma mãe
de um abrigo
de um país
de verdade
abri um livro
de cada grandeza não sei
se houve proveito
tanto quanto houve de mim
minha álgebra tremula
na ponta de meus dedos
captando sopros
as vozes
as contas
as preces
interrompidas
Espaço Invisível
Primeiro
ㅤㅤㅤㅤㅤ Um dia
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ depois outro
caminho a fio
descubro forças no vento
me atino da falta
no bolso no coração
Uma vontade um desejo antigo
um relógio
tictaqueia no pulso sem uso
a vida e seus compassos:
uma vez ajustados
esquecemos das horas
lembramos das cifras
O que reconheço
nessa massa colorida
que se arrasta pelo sol
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ macio
ㅤno bafo da manhã
em alvorada?
o dia nasce
ㅤㅤㅤㅤjá pronto
ㅤㅤㅤㅤpra se acabar em luz
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤou sonho
mas antes
um mundo de olhos em sono
um transe de vozes na calçada
explode
exala sonhos
laços da noite passada.
As calçadas são lastros
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤrastros cotidianos
vertidos a sapatos confusos
ㅤㅤㅤcaminhadas em desalinho
ㅤㅤㅤㅤdespercebidas
na poeira da ruaㅤ
ㅤㅤㅤㅤinsetos perdidos
ㅤque não respondem
ㅤㅤㅤㅤㅤa nenhum
ㅤㅤㅤㅤㅤsilêncio
A espera cansa
ㅤㅤㅤ ㅤlava
ㅤㅤㅤ ㅤlambe
ㅤㅤㅤ ㅤlavra
mina a ciência da calma
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤarrasta
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤalastra
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤrechaça
e torna a concordar quando a lotação
como um míssil feito da massa
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤdo gás
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤda carne
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤdo cálcio
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤhumano
chega sem grandes estouros
ou estragos.
Nada reconheço
nessa prisão
na vista da estrada
na tontura a girar
no peso que racha o asfalto
ㅤㅤㅤㅤㅤlota o bolso
ㅤㅤㅤㅤㅤcarrega verdades e segredos
ㅤㅤㅤㅤㅤvistos à janela enquanto
ㅤㅤㅤㅤㅤolhamos pra dentro.
lá fora
inaudível som de lata
ㅤㅤㅤㅤgarupas de bicicletas
ㅤㅤㅤㅤziguezagueando lentas
fugindo à lógica
rompendo a profusão das fumaças
babilônia de giros e gritos nas CG’s
ㅤㅤㅤóleo nos olhos
ㅤㅤㅤventos de gasolina
vozes de sol
mãos suadas
sustentam saudades
saúdam a tudo
vigiam as estradas e o preço
do diesel
Por fim
Eu chamo
vem
ㅤㅤㅤmenino
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤvemㅤvem
menino
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤaquiㅤㅤㅤㅤvem
ㅤㅤㅤㅤㅤ
Meu caminho é de versos
serpenteios e escuridades
confusa erosão em curvas
Um riacho rasga o caminho
ㅤㅤㅤㅤㅤno coração
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ palavras
que dizem diferentes formas de ver o tudo
ㅤㅤㅤㅤㅤo tudo de dentro
Mas sim:
meu caminho é seguro.
ㅤㅤㅤㅤO verso é verde
ㅤㅤㅤㅤé de verdade
coexiste com as coisas acontecidas
milhares de milhões de Infinitas
ㅤㅤㅤㅤㅤamenidades
Coisas que mergulham no olho
rua cadeira de rodoviária mochila salgado frito gente
ㅤㅤgente viva
ㅤㅤque pensa
ㅤㅤㅤㅤpul[s]a
ㅤㅤㅤㅤdes[forra]viaㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤtrabalha
ㅤㅤㅤㅤl[ab]uta
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤgente que sobrevive
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤao tempo
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤao tiro
ㅤ ㅤㅤㅤㅤà tara
ㅤㅤㅤㅤㅤgente
ㅤㅤㅤㅤㅤgente que acontece
ㅤㅤㅤㅤㅤsem mistificações.
futurismo
de amanda santo
desde o começo do fim dos tempos
cientistas, físicos, astronautas
sociólogos do caos gastam
suas lupas telescópios
tentando descobrir o que é que existe amanhã
se lá vai ter gente, essa carne humana pesada
ou só espaço vazio puro
dia desses li a notícia
: Pesquisadores encontram uma partícula de futuro
foi numa folha de papel surrado
pedaço de coisa com destino de esquecimento
amassada no cesto de recicláveis
foi um estudante entediado
quem abriu o lixo pra gastar Tempo
com curiosidade distraída abriu até os miolos
daquelas linhas sem função
usando as ferramentas mais modernas
aumentaram o troço
era um poema
rascunho de insônia
rasgado, riscado, fugido
remexido mil vezes
investigação como nenhuma se viu na história da ciência
um estado avançado de busca
qualquer coisa além da matéria
do que não existe
desenho do futuro de um passado que ainda
não aconteceu
diante de tão inédita invenção
o poeta foi condecorado com um Nobel
da Existência título: Agente da Anunciação
inventor do invisível
possivelmente impossível
criador do inútil infundado futuro
promissor
lugar onde não
haverá carne humana pesada
nem espaço tempo poetas nem invenções
no futuro, está escrito no poema sagrado
vai ter só o que sobra das guerras depois que a bomba chora
: o fim
e no fim, assim como no começo
restará somente o verbo.
castração
teu amor
esse objeto pragmático
consumiu meus sonhos
soletrou pavores
pragas
pedras no desejo de existir
a casa
os quartos sem cor
vazamentos na pia
teus escapes
ratos nos buracos da ardósia
quando a poesia, sem ranger
abre uma vala
da sala ao corredor
metros vazios de você
pernas, fórceps, alicate
meio corpo dentro
e tuas mãos de coentro e cigarro
me aspiram o dorso
para dentro da asa doída
chorei corcunda nas frestas dos seus dedos
cobrimos o abismo com o sofá
travamos as portas
mastigamos as chaves
e agora
esse olhar de finitude
[PÃO COM VINHO 39,90 O KILO]
refletida no vidro
com a fome de um
século
mastigo meus dentes
e repito em silêncio a mensagem
jesus te ama
jesus christ my lord
será verdade?
deve ser difícil me amar
my lord
repito em silêncio
refletida no vidro
da avenida
28 de setembro
vila isabel
rio de janeiro
brasil
deve ser difícil me amar
my lord
deve ter sido bem difícil
quando
fazia calor na hora de maria
e eu usava os travesseiros
pra me refrescar
my lord
deve ter sido difícil me amar
quando minha única prece
foi quebrar
as pernas da cíntia
que me humilhou na educação física
estamos de acordo que amor tem limite
né
my lord?
deve ter sido difícil
quando eu pensava na missa
que jesus tem um pinto
my lord
e que quem tem pinto tem fome
deve ter sido bem difícil me amar
enquanto eu contemplava teu corpo de homem
e não via nele divindade
quando eu desejava mal a quem me matava lento
my lord jesus Christ
my lord
quando era escuro e eu era jovem
my lord
e tinha mãos
e tinha um corpo e
fazia calor na hora de maria
e quando vesti a pele de édipo e furei os olhos
e quando vesti a pele de medeia e permiti
que esculpissem
meus
escombros
deve ter sido difícil amar a minha carne fraca
my lord
porque aparentemente
my lord
eu não devia mais ter fome
depois de mastigar a tua carne
nem sede
depois do meu primeiro porre de vinho
mas eu ainda morro de fome
my lord
quando
faz calor na hora de maria
deve ter sido difícil me amar
jesus te ama
e ainda agora
jesus te ama
deve ser bem difícil me amar
jesus te ama
enquanto apenas olho meu reflexo na vitrine
jesus te ama
e as letras dizem
jesus te ama
e eu me pergunto
jesus te ama
ao meio-dia de um verão antecipado
jesus te ama
que caralhas
jesus te ama
o teu amor
jesus te ama
tem a ver
jesus te ama
com o restaurante self-service
jesus te ama
eu só queria almoçar
A arte de sambar submersa
1.
tentei sambar debaixo d’água
a correnteza tirou
2.
estar quase submersa faz esquecer
o sol na cabeça
3.
a vida é mais lenta
debaixo d’água
debaixo d’água
a vida demora
o ritmo da água
antecede o ritmo da terra
4.
a arte de sambar
submersa não se ensina
como martelar
prego líquido
com as mãos, é divertido
é gosma que cola
urge rirmos de nós mesmos
sem perder o compasso denso
das águas
5.
o corpo fica submerso
a cabeça, não
o tempo de voltar
à superfície caducou
as águas do rio subiram
a flora recuou
a cabeça submergiu
com o corpo
para não perder
o compasso
para a correnteza
restituir
o que ela tirou.
outonada
outonear
dobrar esquinas
não mais desperta
nenhum mistério
lagrimar
lembrar dobrado
do amor não-logrado
numa tarde um beijo
que nunca teve bis
desenterrar o enterrado
a dor do escritor
que ama outro escritor
cemitério escondido
anotações nos livros
tanto desejo perdido
momento que é momentum
elipses — eclipses — apocalipses
terrafogada em copos
deglutindo novos ócios
contrariado no passado
contrariado no presente
secura — silêncios.
América Xereca I
américa,
eles xeretam
tua xereca
xeretam e enxertam
sementes de paus
eucaliptos
pinos
seringueiras
xeretam tua prexeca
e injetam fertilizantes
américa-xereca,
eles fazem cheques
com a tua xeca
Corpos outros
Quando dois corpos
Se encontram
Pode ser acaso
Ou afeto
Quando dois corpos
Se enroscam
Há desejo
Há desarme
Se os corpos
São pretos
Há bagagem
Rotas de fuga
Se esconderam
Debaixo da pele
E a cabeça
Cochicha segredos
De um tempo outro
Às vezes
Vem o banzo
Outras
Um mar de sangue
Mas quando
Esses corpos se beijam
Acenderão os poros
Pra que a voz levante
E ninguém esqueça:
Nós merecemos
Ser amades.
Agradecemos a leitura!
Poeticamente,