7 poemas suspensos de Matheus dos Anjos

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia
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5 min readNov 15, 2023

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matheus dos anjos nasceu e vive em Salvador (BA), é jornalista, fotógrafo, diretor e poeta. Autor de onde a água faz a curva (Editora Minimalismos, 2023), também criou e apresenta o podcast “dor de facão”, disponível nas principais plataformas de áudio, como Spotify e Deezer. Idealizou e dirigiu a websérie documental QUEERBRADA (2022), que conta a história de cinco artistas LGBTQIA+ da cidade de Salvador.

O prender da respiração
segundos antes da

queda.

Algo paira no ar.

A expectativa daquilo que não vem,
o que não existe, o tao, aquilo que permite
que algo haja. O ato. O devir.

O falho e infinito.

Eis aqui poesia. Pura e simples.

“mas se me queres morto
forjas um corpo primeiro
algo desmembrado por cães famintos
assina a sentença derradeira com vontade:
aqui jaz um dedo em riste
foi acusador”

Eis aqui poesia.
Camarada!
Uma forte escrita. Capaz de surpreender
em ritmo, conteúdo, questionamento e desemboque.

Uma escrita forte, essa que surge de quem está na mira (e mirando) (d)os resquícios de vida que esbarram e escorrem em pequenos vislumbres no meio do nosso dia a dia-alienado. Um convite ao salto do alto da ponte para o futuro que talvez não venha. Um convite para comemorar os pequenos quases, as falhas e, claro,
as conquistas possíveis
da linguagem.

Respira fundo.

&
Boa leitura:

os novos mandamentos

é preciso recriar movimentos pélvicos
na esperança de dias férteis

é preciso relembrar o gelo
que abre mão de átomos quietos
para se derramar
e possuir a forma do recipiente que lhe contém

é preciso precisar o tempo sem relógios
no propósito de libertar o movimento

é preciso traçar os prazeres
na armação dos tecidos que te veste

é preciso esquecer o balde
que ontem foi chutado
bem como a barraca
e o seu pau desarmado

é preciso, sempre que possível
acertar a trave
e comemorar

o centro da demora

como toda luz do entardecer
que oscula com brandura
todos os cantos que sem sombra
existem
é aquele vermelho que me circula
em maratona contínua

de todas as letras
a mais bonita sempre será
a primeira que cai da sua boca
como um cântico fúnebre
sendo arrumado com cuidados
nos sete palmos
bem como um caixão cumprindo
seu propósito

a primazia de um seco
que não se sabe em pé
em situação de sangue corrente
envergando pro pé

e nessa mira que me sinto
porque tanto tarda o dardo
em acertar o alvo que sou
salvo?

liberdade não passa de um bairro

a casa de vidro
busca o céu
da ponta do quarto
passando pela sala
a última aresta da varanda como ponto final
suspenso
em estado de eternidade

na casa de vidro
nada fica escondido
os crimes do amor
o gesto de uma ansiedade
a verdade de uma fantasia
o cheiro do que é rotina
transparência é ter vergonha
exibicionista

das beiras do massapê
o movimento acontece
sobrepondo cal e vigília
daqui de cima: tudo pequeno
este mapa da vida real
tão possível agarrar com a mão
fazer deste mar um grande caldeirão
separar com o indicador e o polegar
humaitá bonfim ribeira e subúrbio
que em visão panorâmica
parecem se aproximar de maneira
perigosa — o ferry atracando
no terminal de paripe

a imagem estática da cidade baixa
continua bem aqui
deste ponto
e eu caminho pra despedida
ainda aqui
neste ponto
limpando da mão
o drama geral da casa de vidro
que — pelo certo
uma hora
haverá de quebrar

por ora
peço ser possível
girar o globo de plástico
e mais uma vez cair com o dedo
ainda aqui
neste ponto
onde tudo se vê
e nada sai do lugar

enigma posto

na manhã de sol frio
a voz de minha avó
correndo no piso branco
afirma em nota
afinada
tudo sobre a terra carrega
a novidade de ser útil
— termos, significantes, corte lacaniano

a parte que não traguei

a luz antecede a visão
o breu prontifica o nada
fatídico dia que chorei
com pulmões monocromáticos
pulmões de quem fuma
como preenchimento
a fumaça só para ter um peso em si
de tão leve

nos dias de neblina
os mesmos pulmões
me ensinaram a desaparecer
boca no escapamento do carro

nessa brincadeira
foram-se os anéis de fumaça
ficaram os dedos
pretos como o preto do
betume
derretido
na consolidação de um milagre:
deus mora numa tragada
aquela que menos durou

os fios de prata

qual a linha que liga
a primeira letra do alfabeto
ao z?
o que há entre um ser
e outro?

o que é intuitivo
tem sempre um q
de novidade mística

de fato, lá estava ele
a cigana fazendo dança
nas suas roças
algo crescendo e se fazendo
um alerta
um aviso
um peito extravasado
no compartilhamento de tanta magia
era demais pra quem tem água
contida

pediu um sinal de cima
uma mensagem clara
de deus
ou coisa parecida
seja de fulano
ou beltrano
(nenhum nome jamais
é inteiramente Dele
propriamente próprio)

na vida, há de se escolher
ou obedecer
o senhor interno-eu
mais-que-perfeito:
desejos são vagalumes
na planície vazia
de um porquê em suspensão
precisava de resposta
então
os fios de prata tensionados

mas o caminho se faz
certamente correto
erroneamente previsível
os oráculos do dia testando
minha paciência
não vão tirar o que é meu
seja luz
ou seja breu

cova aberta

anúncios garrafais no tabloide
de segunda categoria
anunciavam minha morte apenas pelas iniciais
meu corpo esquartejado letra por letra

captei palavras do obituário
e escrevi como se próprias
criadas naquele meu antigo
modelador de argila

tem terra úmida na linguagem
e o corpo sempre vem por último
estar equivocado antecede minha consciência

mas se me queres morto
forjas um corpo primeiro
algo desmembrado por cães famintos
assina a sentença derradeira com vontade:
aqui jaz um dedo em riste
foi acusador

seria possível ter dois corpos
que morassem atrás de minha palavra
se estivesse disposto a tua repetição neurótica
minha morte em teu eco

mas era eu quincas atravessando
as sete portas, e vivendo
minha morte matada em nome da irmandade
afinal o anúncio estava atrasado
meu corpo já estava morto
antes da sua ciência me provar vivo

mas se me queres irmão
dai-me fôlego para um último berro
naquela pequena curva no fim da rua
dai-me um pouco d’água
se não morro
de novo

matheus dos anjos é o poeta selecionado para a coletânea de novembro. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.

Publicado por

Yuri Lucena | Poeta e Assessor de Conteúdo no portal faziapoesia.com.br

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