8 poemas submersos de Rafael Moia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia
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6 min readApr 10, 2024

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Rafael Moia tem 34 anos, é de Belém (PA) e editor. Lê, escreve e desenha sonhos caóticos, na esperança de organizar neste plano o que os Cauanas berram sobre o imaginário amazônico. Uma vez olhou para sua estante e se perguntou quantos livros de autores da região Norte tinha, e advinha? Não preenchia nem uma prateleira! Hoje, aos 34 anos, dedica-se a Paracauari (em Tupi significa “rio de águas profundas”), apresentando a imensidão que é a literatura concebida na Amazônia.

Falar da poética de Rafael Moia — pra esta autora, deveras sudestina — é traçar rota e destino para um mergulho muitos pés abaixo da superfície. A leitura encanta, convida e desloca, lembrando os infinitos limites da linguagem de nossa eterna Pindorama. O poeta usa com maestria cada uma de suas rimas, analogias, metáforas e, sobretudo, expressões de sua terra. É portanto, um autor que vai além de meros estereótipos, concebendo ímpares poesias — de assinatura própria. Rafael é poeta que banha em cada escrito um pouco de si e de um extrínseco há bastante trilhado — fazendo desta autora uma singela cunhatã que ousou desbravar o rio profundo de suas palavras. Um bom mergulho, caros leitores!

Aluvião

Akuanduba, me lançou no côvado / pela mão me pegou Yebá Bëló
no fundo não ouvi tú / arriba tú me levou
mas adora o torpor dessas águas / distante Guaraci está
não te dói perder tanta gente / vou trazer todos pro céu azul
sete dias e sete noites nada / um a um tú nos criou
não adianta lutar / a mão dela já venceu
aluvião é força de mar / e a terra é nosso ninho
eu leio o que tú fez com a vida / eu corro pela terra a gozar
a flauta toca a canção / cunhatã a espreitar
os remidos podem ouvir / corre o bicho a desenfrear
aglutinado a vida que resta / sobe e desce sem se cansar
tuque tuque da canoa quebrada / ai ai ai do pé curumim
árvore não andam nas águas / árvore em pé melhor que capim
cadáver de virola passa / vivo sob a sombra da ceiba
jovem e velhos sucumbem / o nó da rede apertando
um Irapuru surgiu / um canto ameniza o penar
eu canto a dor da beleza / não se ouve mais outro canto
ouve cunhatã / só o estalar da serrapilheira
o ubá rasgando / o rio o choque no barranco
ainda distante de nós / kuru consegue ouvir
estala a dor do penar / liana, cipós, trepadeiras
peles vermelhas / chicote na mão
ela anunciou / um tabaco, um café
a juventude das moças / um choro calado
roubadas / por seu Julião
é índio / jovem
indígena / que o sorriso perdeu
não existe outro mundo / para onde ir?
apenas águas profundas / Kararaô.

descobrimento

Acabou de sentar em um cara em São Paulo
Não sabe se a casa dele é na zona leste ou zona sul
Foi tão duro que nem sentiu aquele frio na barriga
Ficou imóvel dez quinze vinte segundos
Encarando a lombada do cem anos de solidão.

Ele não percebeu, maslembrou, lá no Norte
— não sou gay
Na escuridão, passivo, a noite toda
Homem gordo, preto, um e sessenta e oito
— não sou padrão
Queria fazer tudo, gato e sapato, no pêlo
Mas foi pouco tempo, se deitou, dormiu

Mais um hétero que nem eu.

adão negro

Hoje eu caí da escada
um único passo no vento
quebrei pés, mãos e a certeza
de menos uma costela de Adão
que caiu.

Até dez

Coletânea Sotaque das Águas

A onda quebrando na proa
infinitas gotas de sonhos afogados
O xote ao fundo calado
pelo berro do motor do popopô
vez ou outra afoga cansado
Não é um cof-cof igual ao do vovô.

Aquele pigarro arranhado
na garganta, já escalpelou
uma-duas-três
perdi a conta!

Nesse embalar de rede molhado
meu estômago embrulhado
a ânsia de voltar derrotado
o sotaque chiado, um égua forçado
um senhor ao meu lado querendo falar.

A foto da netinha nas mãos
agora sepultada no Guajará
e o mais engraçado
é que não estou nem aí.

Nem aí pra netinha do Seu Januário
pro radinho de pilha da Dona Nenem
o motor cof-cof do Seu Mundico
Será que vai chover?

Um soar lá do trapiche ecoa
através do oco aqui dentro
um tronco seco arrastado pelo Guajará
as gotas que caem dos meus olhos
o inverno já deve tá pra chegar!

Acorda sem querer
passa os dias
a corda
todo dia
no pescoço.

Giral

Coletânea Sotaque das Águas

Em cadeira velha, tarde da noite, meu peito senti
a dor inunda teu seio, minha boca no peito querendo partir
eu não sei do amanhã, eu não sei aproveitar o agora
ontem um presságio gritou
rasgando meus sonhos, enterrando-os no mangue
apoiada na janela por entre a tua cachoeira de cachos
eu vejo o abismo da noite
as janelas abertas denunciam a parcimônia do estar aqui
o que corre ao embrenhar na mata, o que geme ao embrenhar na casa
o que geme ao entrar dentro do corpo e da alma
de novo
um terceiro golpe estala
um quarto golpe na alma
sem mais presságios para sonhos enterrar
dói a minha consciência.

O giral alaga rubro
popopo segue em viagem escondido
nos furos de rio de braço em braço
espelho d’água partido, ribeiro bom.

Pela janela açaizais de grande touça
bacabi é estranho pra mim, não parece maduro, só parece estar ali
bacaba, bacabi, juçara palmeira é tudo igual
não posso mais fazer qualquer coisa
eu existo do lado de lá, tu cresce do lado daqui
flutuando na várzea fecunda, não se pretendo ao povir.

Não existe sonho aqui, a realidade dos que partiram
sem eira nem beira
os bons partem, os maus ficam
É melhor assim, o inverno já tá pra chegar
Pancadas e pancadas de água
O sentido da vida é lama no matapi.

folheando

um livro é eterno
de mão em mão
de boca em boca
na cama no chão
deixa de ser papel
não deixa a ideia
enquanto existir o ideal
— existe luta.

Aturdidas

Coletânea Sotaque das Águas

I.

As águas de março inundam
o outono, trazendo o inverno
— quando a lâmpada falha
a lua o charco clareia, é cheia.

depois das seis é sereno
— te cobres o fronte, pequeno
é dedo grosso empurra pus
ninguém nunca morreu de
andiroba, copiba e cabacinha.

II.

eu, cunhatã, de dia
cubenira de dores da noite
te esconde, cunhatã
cubenira não te deixa morrer.

a cobra não é grande, mas mata.

tu, cubem, vem do rio
é belo, és jovem, ainda sorri
de águas barrentas mercúrio me trás.
pior será se eu viver.

a cobra não é grande, mas mata.

III.

Domingo é dia também
se morre, chora, o médico vem
me ama
deixa o seu amor.

domingo o pão cai do céu
chove nos campos
e a marca do arroba
deixa o chão sem pão.

no reflexo do banho me vejo
cantando agouros pra mim
pauzinhos contados no espelho
o inverno já tá para chegar.

toco meu corpo com medo
até isso vou perder, Ceuci?
virgem dos campos cachoeira
tua morada, estou aqui!

Guaraci, aqui não o vejo
as tábuas mortas me impedem
gotas de chuva alimentam
os desejos que escorrem no olhar.

apenas vejo meu corpo
que não pertence a mim
é dado aos domingos perdidos
de chuva dourada e afins.

domingo é dia de banho tomado
café na cama, calcinha de renda
— pra quem?
o inferno já tá pra chegar.

Rafael Moia é o poeta selecionado para a coletânea de abril. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.

Publicado por

Ísis Cunha | Poeta e Assessora de Conteúdo no portal Fazia Poesia faziapoesia.com.br

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