Uma carta a Charles Bukowski

flavia alvs
3 min readJul 12, 2021

Olha Charles, te escrevo para contar que acabo de terminar aquele seu livro chamado Mulheres e confesso que ando tendo dificuldades em te resenhar. O caso é que eu andei comprando umas brigas por aí quando cancelaram a sua literatura e disseram que homens como você não valiam a atenção de uma leitora. E então, eu sabendo que havia motivos para a zanga, fui ao cerne e li, justamente, aquele seu romance em que você dispõe a falar sobre as suas fantasias com as mulheres.

As suas 284 páginas, na época, datilografadas em dois meses e meio, mostram um homem dando ao mundo o que o mundo espera dele; humor, charme e a autocomiseração dos homens fracos, a certa altura, mais lúcidos da fraqueza, para o bom e velho clichê do final feliz; como se a baixa da libido, associada à uma possibilidade de monogamia, redimisse o lobo escancaradamente escondido embaixo da pele de um carneiro. E a fórmula que você usou no caso de Mulheres, meu deus, como gostam. Já fizeram de um tudo; filmes, livros, séries e mais séries de homens lascivos e sensíveis rodeados de ninfetas e coisas do tipo. O caso é que nem um Blood on the Tracks, do Dylan, colocado de trilha para as cachorradas de Hank, em Californication, deu conta de fazer brilhar aquilo que não brilha.

Tudo bem, você sobreviveu à base da confecção de poesia marginal, comeu enquanto todo mundo morria de fome, bebeu bastante e comprou a sua casa em Miami. Você (vivinho da Silva) presenciou o prestígio da fama em vida como quase nenhum dos caras que você leu. Porém, toda boa fama tem seu preço, e você pagou o seu quinhão.

Ainda assim, confesso que gosto da maneira como você lida com todas as suas relações, em termos literários, claro. É pobre, parco, ilusório e infantilóide, assim como você mesmo é. Mas devo dizer que, apesar do mau jeito, existe uma certa honra nas relações reservadas às mulheres com um quê de insanas.

É como observar em closed caption os instantes que precedem a peleja de um puma contra um lobo em um ringue de rinha. A fatalidade do lugar e das regras que regem aquele mesmo lugar, e o olhar vítreo e ensandecido das feras na iminência de uma carnificina. Mesmo que, no fundo, em ambos, a vontade de matar brigue com um certo sentimento de finitude por aquela qualidade de conflito.

Mas agora, papo reto.

Se te escrevo, não é para dizer que seu livro é uma merda ou vale a pena ser lido ou se você é um porco ou não. Isso não vem ao caso. Te escrevo para contar que, apesar daquelas tantas e tantas passagens indigestas, essa leitura me aproximou um pouco mais de você e daquela loucura que a gente tem em comum.

Uma obsessão, uma doença, sei lá que merda é essa e que nome se dá, eu senti ela ali, nas entrelinhas, e vi no seu medo o mesmo medo que me assombra. E por isso a bebida, os cavalos e todas essas milhares de distrações que a gente inventa.

Uma coisa é certa, se seu deus por acaso existiu, ele, provavelmente, morava menos no seu “piru” de ouro e mais na velha máquina de escrever que insistentemente martelou por toda a sua vida. Em algumas passagens é quase como se eu ouvisse o canto daquele mesmo pássaro azul que você escreveu, muito anos mais tarde, em um dos seus melhores poemas. E isso ainda é lindo.

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