Ritmo, forma e deforma: uma análise do “Dança para Cavalos”, de Ana Estaregui

Hortência Siebra
Fazia Poesia
Published in
4 min readSep 27, 2023

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Foto da autora (arquivo pessoal)

No livro Dança para Cavalos, de Ana Estaregui, lançado em 2022, pelo Círculo de Poemas, somos convidados a entrar numa coreografia que, com um passo pra lá, outro pra cá, vai cerzindo o humano ao inumano e transformando o oposto em aproximação. O cavalo serve como mote e meio de transporte. Sua crina aparece já no prólogo, dentro de uma citação de Black Elk, que começa com os animais rodopiando e relinchando e que termina com uma prece: o desejo de que esses cavalos sejam vistos em sua dança.

No poema nº 1, a voz poética nos desafia a pensar sob distintas perspectivas: pensar como pensa uma flor, um rio, uma pedra, a terra e a morte. Em meio a tamanhos desafios, há uma premissa: “a água sabe / ser água”, que parece ser mais convincente da importância de se deslocar do que todas as proposições, e a correnteza dessa água arrasta outra máxima, agora de Fernando Pessoa, que diz:

Os deuses são deuses
Porque não se pensam

Saber ser água ou deus é não colocar em questão sua natureza. O afastamento proposto nos poemas é, ao mesmo tempo, uma aproximação, afasta-se do humano para se aproximar da essência dos homens. Sem que a questione, a distância vai desenhando seu contorno com base no desprendimento das formas preestabelecidas.

De um poema a outro, vamos deixando a lógica e a razão dos seres humanos e imergindo em características próprias dos minerais, dos vegetais e dos outros animais além do homem e do cavalo. Experimentar novas formas de existência é se libertar. Embora isenta da monstruosidade do inseto, presente no famoso enredo kafkiano, essa voz poética nos propõe, com sua dança, a experimentação da liberdade. Como nos diz Deleuze e Guattari (2017), em Kafka: por uma literatura menor, “a liberdade de movimento que me falta completamente aqui me é concedida em outra esfera”. Essa liberdade transpõe a escrita sobre as coisas e chega a uma escrita a partir do dentro das coisas, como mostra o poema nº 5:

escrever a pedra
e não escrever sobre ela
(…) mas escrevê-la por dentro, a pedra

Ainda aproximando o livro de Estaregui da obra de Kafka, com base na análise feita por Deleuze e Guattari (2017), percebemos em ambos uma “procura incessante por um mundo de intensidades puras, onde as formas se desfazem e as significações também, os significantes e os significados, em que tudo isso ocorre em proveito de uma matéria não formada, de fluxos desterritorializados, de signos assignificantes”. Tal qual Samsa, a voz poética experimenta intensidades puras, ao se afastar da forma humana. Diferentemente dele, essa poesia nos aproxima não só do inseto, mas de distintas maneiras de existir, como se vê no poema nº 8:

a casa já não tem paredes, nós somos a casa
palafitas ancas, penugem e luas em repetição
temos os cavalos no corpo
não: somos os cavalos
os músculos e não só

As transmutações vão se repetindo ao longo dos poemas e o afastamento do humano, aos poucos, se torna menos desafiador e mais confortável até surgir, com maior intensidade, a temática da gestação. O poema nº 56 mostra as transformações ocorridas no corpo de uma mulher durante a gravidez, baseada nas alterações dos seios. No poema nº 62, aproxima-se o parto de uma costura, ligando uma mãe a todas as outras mães. O poema nº 64 fala de “ter uma filha nas ancas”. A gestação ressignifica todas as metamorfoses, não mais convidando a aproximações, mas as realizando com o próprio corpo. Já não é mais tentar escrever a pedra por dentro, é ser o dentro.

Depois de ler os 73 poemas, sentimos as mutações e os deslocamentos como coisas vividas. São as memórias de uma dança, das sensações e do movimento incessante dos cavalos. Essas experiências lembram outros versos do Pessoa:

Sentir tudo de todas as maneiras
Viver tudo de todos os lados

Entre o pensamento proposto e a visão peculiar, dançamos enquanto geramos outra vida dentro de nós, enquanto sentimos tudo de todas as maneiras, enquanto vivemos tudo de todos os lados. Dançamos e, dançando, somos a própria dança, somos os cavalos, a flor, o rio e a pedra. Enquanto dançamos, vamos nos tornamos cada vez mais humanos.

Referências

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Tradução: Cíntia Vieira da Silva. 1. ed. 3. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
ESTAREGUI, Ana. Dança para cavalos. São Paulo, SP: Círculo de poemas, 2022.
PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor. Lisboa: Ática, 1946.
PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos Livro de Versos. Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1993.

Hortência Siebra é natural de Itapipoca, no Ceará. Reside entre a capital, Fortaleza, e sua cidade natal. Tem graduação em Letras-português, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, divide-se entre os estudos e a escrita de contos e poesias. É autora dos livros À Margem do Impossível (2021), No Sexto Dia (2022) e O Inverno à Tarde (2023).

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Autora do À Margem do Impossível (2021), do No sexto dia (2022) e dO inverno à tarde (2023)