Querendo a morte — uma tradução de Anne Sexton, por Laryssa Carreiro

laryssa carreiro
Fazia Poesia
Published in
6 min readDec 20, 2023

--

Anne Sexton, by National Portrait Gallery, Smithsonian Institution

Atraída pela trágica história de Anne Sexton, li e reli a autora como uma inspiração poética para um dos temas mais sublimes da escrita dela: a morte.

Já havia notado que não existem muitas traduções de sua obra para o português e tenho acompanhado a inédita publicação da Editora Relicário, uma coleção bilíngue dos célebres poemas da poeta, com tradução da escritora e tradutora Bruna Beber.

Sem mais delongas e inspirada pela obra e pela incrível tradução de Beber, parti para uma busca íntima própria — uma tentativa particular de traduzir o meu poema favorito da autora e que até então eu só conhecia sem tradução.

Anne Sexton nasceu em Newton, uma cidade perto de Boston, nos EUA, em 9 de novembro de 1928. Diferente de escritores da sua época, a escrita brota na vida de Sexton só em 1953, aos 25 anos, quando ela sofre uma crise logo após o nascimento da primeira filha, Linda.

É a partir da recomendação de médicos que ela começa a escrever poemas como uma forma elaborada de colocar na palavra suas angústias e, assim, dar um corpo para compreender as próprias questões psicológicas. É em meio a esses colapsos mentais que Sexton encontra, na poesia, sua vocação principal, já que a vida da autora, influenciada pelo sonho americano, estava enterrada sob uma estrutura falsa que não lhe permitia se expressar. Enterrada pelos papéis de mãe, filha, esposa, dona de casa, forçados pela máscara do conforto e da conformidade.

Seu primeiro livro, publicado em 1960, To Bedlam and Part Way Back, se destaca na época por ser marcada como uma poesia cruel e brutal, descrevendo de uma forma crítica e analítica as situações psicológicas e emocionais que carregava. Muitos poemas que marcam o início da carreira de Sexton buscam refletir a experiência dela de internação para tratamento psiquiátrico.

O poema traduzido

Querendo a morte

Já que perguntou, normalmente não lembro
Ando vestida, sem marcas nas roupas daquela viagem
Então, a tentação quase inominável retorna

Mesmo assim, não tenho nada contra a vida.
Conheço bem o pedaço de grama que você mencionou
os móveis que você colocou sob o sol.

Mas suicidas têm uma linguagem específica
Como carpinteiros, querem saber com qual martelo
Eles nunca perguntam o porquê construir

Duas vezes simplesmente me declarei
possuí o inimigo, devorei o inimigo,
assumi seu ofício, sua magia

Desta forma, pesada e pensativa,
mais quente que óleo ou água,
Relaxei, babando pelo buraco da boca

Não pensei no meu corpo na ponta da agulha
Até a córnea e os restos de urina se foram
Suicidas num instante traíram o corpo

Abortados, nem sempre morrem,
mas deslumbrados, não esquecem uma droga tão doce,
que até as crianças gostariam de provar

Empurrar toda a vida debaixo da língua! —
isso, por si só, já se torna uma paixão
A morte é um corpo vazio; ferido, você diria,

e ela ainda espera por mim, ano após ano,
para curar com delicadeza uma velha ferida,
para libertar meu fôlego de sua prisão

Suicidas às vezes se encontram, ali suspensos,
furiosos com o fruto, uma lua inflada,
deixam um beijo confundido com migalhas,

deixam a página do livro aberta à toa,
algo não dito, o telefone fora do gancho
e o amor, seja lá o que for, uma infecção.

O poema original

Wanting to Die

Since you ask, most days I cannot remember.
I walk in my clothing, unmarked by that voyage.
Then the almost unnameable lust returns.

Even then I have nothing against life.
I know well the grass blades you mention,
the furniture you have placed under the sun.

But suicides have a special language.
Like carpenters they want to know which tools.
They never ask why build.

Twice I have so simply declared myself,
have possessed the enemy, eaten the enemy,
have taken on his craft, his magic.

In this way, heavy and thoughtful,
warmer than oil or water,
I have rested, drooling at the mouth-hole.

I did not think of my body at needle point.
Even the cornea and the leftover urine were gone.
Suicides have already betrayed the body.

Still-born, they don’t always die,
but dazzled, they can’t forget a drug so sweet
that even children would look on and smile.

To thrust all that life under your tongue! —
that, all by itself, becomes a passion.
Death’s a sad bone; bruised, you’d say,

and yet she waits for me, year after year,
to so delicately undo an old wound,
to empty my breath from its bad prison.

Balanced there, suicides sometimes meet,
raging at the fruit a pumped-up moon,
leaving the bread they mistook for a kiss,

leaving the page of the book carelessly open,
something unsaid, the phone off the hook
and the love whatever it was, an infection.

Anne Sexton, Photography by Arthur Furst

O poema traduzido de Anne Sexton, “Wanting to Die”, é um dos mais singulares poemas em que a escritora retrata seu desejo — quase incontrolável — de findar a própria vida. Escrito dez anos antes de cometer suicídio, o poema é desenvolvido em primeira pessoa e é considerado um dos mais íntimos de Sexton, consagrando-a na poesia confessional, por expressar com tanta profundidade seus sentimentos.

Sexton lutou durante a maior parte da vida contra a depressão e os pensamentos suicidas, como apresenta em seus versos viscerais. O poema, encontrado em uma carta enviada por Sexton para uma amiga, foi incluído em sua obra mais famosa, a coleção Live or Die. A publicação venceu o Prêmio Pulitzer de Poesia, em 1967.

Respondendo à questão que inicia o poema, Sexton não mede as palavras para criar imagens que explicitem sua relação com a morte — uma tentação maior que a própria vida. No desenvolvimento do poema, ela cria a imagem da vida como uma forma de passagem e a morte como uma infecção que, aos poucos, vai tomando conta de seu corpo.

No poema, a autora usa a comparação para elucidar como os pensamentos suicidas acontecem dentro de si e que, na verdade, não existe um porquê desses pensamentos: “Like carpenters they want to know which tools/They never ask why build.” — como parte de um ofício tão enraizado, que não se pode evitar; tão doce, que é impossível negar.

Sexton apresenta as próprias cicatrizes no texto e exibe as marcas de suas tentativas: “Twice I have so simply declared myself/have possessed the enemy, eaten the enemy,/have taken on his craft, his magic.” Além disso, ela conta como é viver neste meio-fio entre a vida e a vontade de morrer. A autora usa a personificação da morte como uma mulher que, ano após ano, está mais próxima e pronta para curar a ferida, libertando-a da prisão da vida.

Nos últimos versos do poema, Sexton escreve imagens que tentam explicar sua experiência com constantes pensamentos suicidas e como eles influenciaram sua vida e seus textos, mas não há palavras para explicar.

A autora então cria imagens fragmentadas, que param bem no meio de uma ação, causando a sensação de falta, de vazio, tudo realizado num simples ato. Enfim, a morte é colocada como uma salvação — um amor que tem o poder de livrar-nos das preocupações da vida.

laryssa carreiro (1996) é tradutora de formação, educadora e poeta por vocação. graduada em Letras e pós-graduada em Semiótica e Análise do Discurso, integra a equipe de poetas da Fazia Poesia desde fevereiro/2023.

--

--

tradutora (inglês), educadora e poeta no @faziapoesia | são paulo/sp @carreirolarys