Quem Fez Poesia? #59 — Ana Luíza Drummond

Confira as trajetórias e as inspirações da poeta selecionada nesta temporada, na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:

Para evocar as primeiras imagens e palavras que entrarão nestas introduções do Quem Fez, por vezes é suficiente a leitura do próprio texto que o poeta transborda. Mas não nesta edição.

Aqui foi preciso recorrer a mais: ler o texto de Ana, tomar um café, ler os poemas de Ana, tirar um cochilo, buscar referências além da escrita de Ana, pagar uma conta e, só depois de alguns dias de meditação, de algum acúmulo, de um punhado de incerteza, conseguir algum transbordamento também.

Talvez esse processo complexo tenha sido necessário porque complexo é capturar qualquer dimensão, comentar qualquer coisa profunda de uma relação tão profunda com a escrita quanto a que Ana parece ter. Profundezas são únicas, mas também exigentes — não à toa, a zona abissal do oceano requer dos peixes que lá habitam uma série de adaptações, como a capacidade de bioluminescência e a resistência à escuridão e às baixas temperaturas.

É surpreendente para mim que Ana perceba em sua escrita um exagero difícil de adestrar, quando eu percebo uma precisão admirável, uma habilidade de extravasar a liberdade contendo-se na medida. É como se houvesse uma desenvoltura muito natural para fazer-se intencionalmente em palavra, produzir os efeitos exatos de sobriedade e embriaguez, mas sei que o poeta também pode ser um fingidor — e é preciso uma dose de coragem para bancar essa condição.

Taí a graça e a beleza da poesia. Taí a graça e a beleza do mistério. Mistério é contradição, ambivalência e angústia, sim, mas também é possibilidade.

Ler o que Ana escreve, então, é apreciar a graça e a beleza do misteriosamente possível ou do possivelmente misterioso. É experimentar algo singular, que se mostra e se esconde, que transita, que disfarça, que se mistura.

Com açúcar e com afeto,

Ana C. Moura— Editora de Conteúdo da Fazia Poesia.

Escrevo

Desde muito menina encontrei na escrita uma forma de descarrego, de expiação. No texto literário, encontro a liberdade que a vida nem sempre nos permite experimentar (e, em alguns casos, ainda bem que não)! Escrevo para entender o que está para além ou aquém da verdade, do belo, do justo. Sou encantada pelos pensamentos filosóficos e gosto de me divertir com eles por meio da literatura, colocá-los à prova, exagerá-los ou outra coisa ainda.

Publico

Meu primeiro texto publicado em livro foi o conto “O Pio da Coã”. Ele saiu numa coletânea intitulada Fantasiando, organizada por Sérgio Prado, pela Editora Regência, em 2012. A coã, como a chamamos aqui na minha região do Vale do Watu (ou Rio Doce), é um pássaro agourento. Dizemos que, quando ela canta, alguém morre. Seu canto gera uma suspensão na ordem dos próximos dois ou três dias: quem morrerá? Se ela já cantou em falso pra gente, eu nunca ouvi. Essas mortes me confiavam a existência de uma outra ordem, diferente daquela que eu aprendia na escola e na igrejinha católica no distrito de Esmeraldas de Ferros, onde vivi até os nove anos. Uma ordem em que os bichos sabiam dos segredos da morte antes de nós e o anunciavam. Foi na literatura que encontrei outras pessoas desconfiadas como eu. Eu publico porque quero me juntar a elas. Quero também gerar desconforto e incômodo em quem, por um motivo ou outro, como eu, também ainda bate continência para a razão instrumental, que é, como alguém já anunciou, a subjetividade do patriarcado.

“A filha, a flor, o cais”

Nesse livro, o inaugural, reuni textos diversos que fui amontoando ao longo de uns dez anos, da juventude à grande virada que foi, para mim, a maternidade. O trecho do verso que dá título ao livro vem de um poema escrito em 2017, no Rio de Janeiro, quando eu não era mãe. Gosto da sonoridade do título, que liga… não, antes que isso, gosto da voz da eu lírica, que se inicia distanciada da personagem do poema, a filha, para ao final se unir a ela… e então essa sonoridade que diz sobre uma experiência experimentada apenas posteriormente, como se ali já estivesse anunciada também: a filha aflora o cais. O poema que fez nascer o livro foi “A mão da minha filha”, digitado para mim mesma no WhatsApp num sopro único da musa que se pôs entre nós (minha primogênita e eu) durante uma amamentação rotineira. Depois dele, saí juntando tudo que dava mais ou menos um poema, ainda que dadaísta, pra terminar de compor o livro. A edição gentil da Elza Silveira, da Impressões de Minas, foi fundamental para lapidar algumas esquisitices da ansiedade e da inauguração.

“ninguém mais entrou”

Esse foi o livro difícil de parir. Exigiu e continua exigindo diariamente coragem para defendê-lo. Ele trata de um tanto de coisas. O exagero talvez seja algo que eu não consiga adestrar na minha escrita. Uma dessas coisas é o conflito interno de uma narradora em torno de sua maternidade. Após o nascimento da segunda filha, ela entra em conflito com a nova imagem de si: potência, vulnerabilidade, cais. Essa imagem não se forma com clareza, pois está marcada por traumas e eventos que a contradizem com facilidade. Ao narrar, ela encontra uma segunda narradora, que tenta morrer ou que ela tenta matar, não sei bem. Ambas estão em volta de outras duas personagens centrais: a mãe e Plínio. É um livro cruel, mas eu estava entre ele e a loucura. Ao publicá-lo, me livro dele. Essa “liberdade”, espero, deve me trazer um maior domínio da narrativa para o próximo que vem chegando, no qual já noto, para meu alívio, uma maior presença do humor em detrimento do drama.

No forno: “Todo mundo entrou”

Esse é um título provisório. Eu o chamo assim, porque ele estabelece uma relação com o romance anterior, mas sem se prender a uma construção fidedigna de personagens. Como é mais leve (eu acho e espero) que o anterior, ele começa com uma cena bonita: uma noite estrelada, uma encruzilhada, um Palio azul, uma calcinha pendurada num retrovisor e só o que posso dizer por agora.

Fazia Poesia

Além dessas obras, publico há algum tempo pelo portal Fazia Poesia, no Medium (https://analuiza-drummond.medium.com/). Como é uma comunidade leitora muito intensa, formada por uma boa parte leitores-poetas, permito-me experimentar algumas formas e temas que talvez não experimentaria em livro. A recepção costuma ser muito calorosa e gentil, o que dá apoio na continuidade dessas investigações temáticas, geralmente relacionadas a temas mitológicos.

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