Quem Fez Poesia? #58 — Ricardo Pinheiro

Confira as trajetórias e as inspirações do poeta selecionado nesta temporada, na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:

A escrita de Ricardo nos pega pela despretensão despretensiosamente intencional, como uma aranha que tece as teias com muita naturalidade — afinal, faz parte de seu ofício diário na cadeia alimentar — , mas sem deixar de dar o bote nas presas mais desatentas.

E não, com isso não quero dizer que Ricardo escreve como quem dá o golpe, mas talvez ele escreva como quem golpeia. E que nocaute. Ou melhor: Ricardo escreve como quem no bar dá um grande gole na bebida mais forte e toma um pileque, fica meio assim, bambo no bambolê.

Existe algo de enigma (e igualmente de irreverência) na brevidade, no corte abrupto, na falta de disfarce, na entrega desmedida, na captura tão precisa quanto imprecisa (ao mesmo tempo) do prosaico, na filosofia do “Vou mostrando como sou e vou sendo como posso, jogando meu corpo no mundo” .

Que bom que Ricardo é um diletante proselitista, um ativo praticante dessa escola chamada Mistério do Planeta. Sorte de quem o lê.

Com açúcar e com afeto,

Ana C. Moura — Editora de Conteúdo da Fazia Poesia.

Eu não sei escrever “de mentira”. Se me pedirem pra escrever algum poema sobre a 2ª Guerra Mundial, por exemplo, eu posso até escrever, mas ele vai acabar sendo mais sobre mim do que sobre a 2ª Guerra. (Eu sou uma vergonha. Esqueci praticamente tudo que aprendi na escola.) O que eu quero dizer com isso é: eu só escrevo do que eu sei e eu só sei do que eu sinto. Isso não quer dizer que eu não saiba mentir, tá? Claro que sei e sei também que faz parte mentir. Acontece que a mentira que aparece nos meus textos é tão verdadeira, que dá até pena de chamar de mentira.

Desde sempre escrevi, desde sempre precisei escrever, mas também desde sempre (deu pra ver que gosto de repetir palavra, né?) tive dificuldade em assimilar, em assumir que sim, eu escrevo. (“Sou escritor” é uma frase que até hoje não consigo falar, mesmo com um livro publicado.) Na infância, minhas referências de “poemas”, “poesias”, “poetas” e “escritores”, no geral, eram tão restritas a um determinado número de versos (que deveriam rimar com outros e que deveriam ter um tamanho específico), que eu não escrevia. Escrever, para mim, era isso.

Os anos foram passando, fui conhecendo Fernando Pessoa, Bukowski, Wislawa Szymborska, Caio Fernando Abreu, Valter Hugo Mãe, Carolina Maria de Jesus, Maria Ribeiro, Tati Bernardi, Fernanda Young (Fernanda Young!!!!!!!!), Ana Martins Marques, André Dahmer, Gregório Duvivier, cronistas (eu sou apaixonado pelos cronistas, meu sonho é ser um cronista), Maria Bethânia, Gal Costa, João Gilberto, Caetano Veloso, Madonna, Gilberto Gil, Aretha Franklin, Sarah Vaughan, Milton Nascimento… Fui descobrindo tanta gente corajosa. Acho que no fundo tem a ver com isso: coragem.

Descobri ao longo do tempo (eu amo incondicionalmente o tempo) que escrever poderia ser igual a falar. Que escrever poderia ser igual a pensar. E isso talvez tenha sido das coisas mais libertadoras da minha vida. Não tem nada que eu odeie mais do que ler alguma coisa que não possa ser dita. Que fique estranha saindo da boca. Que soe muito rebuscada. Que tenha muitas palavras que não estão à mão. Que não são usadas no dia a dia. Esse tipo de texto não me toca. Não me emociona. E, se não me emociona, me parece que ele é apenas isso mesmo: um texto.

Falei tudo isso pra dizer que: assim como penso que a vida é maior do que a vida, escrever também é maior do que escrever. Um texto é maior do que um texto (deve ser, pelo menos). Escrever não é “separado” da vida. Ao contrário. Pra mim, é uma coisa só, inclusive. Tem uma frase da Ana Martins Marques, em entrevista pra Folha de S. Paulo, que resume e traduz (de um jeito bem mais bonito, claro) o que quis dizer: “Escrever poemas é, antes, minha forma de prestar atenção nas coisas”. Um dia me emocionei com uma amiga falando da avó morta no presente. A partir dali comecei a reparar (e a me emocionar), com frequência, que quase todo mundo faz isso. Virou poema:

“quando alguém que tá vivo
fala de alguém que tá morto
e usa o verbo
no presente
sinto como se nada mais
no mundo
precisasse
ser dito”

Uma confusão que tenho dentro de mim (análise duas vezes por semana etc.) sobre a relação que tenho com o “estar vivo” e com o “não entender” muito bem alguns bê-a-bás que envolvem isso virou poema:

“às vezes confundo
a vida
com o mundo”

E confundo mesmo. Viver é tão difícil. Escrever ajuda, pelo menos.

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