Quem Fez Poesia? #58 — Guilherme Aniceto

Confira as trajetórias e as inspirações do poeta selecionado nesta temporada, na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:

Irreverência e sinceridade transbordam este texto e além, desde a autoconfissão (nada autocomiserada) que Guilherme nos faz do caos de sua escrita. “Escrever o que dá na telha”, como ele diz, sem subtítulo e sem organização temática, mas sem também que vire ou se pareça currículo. Pra talvez fazer alguma morada. Ou um barraco — e interpretem isso em todas as polissemias possíveis da palavra. Polissemia expande.

Guilherme se mostra, dá a cara a tapa, mas não na lógica cristã de oferecer a outra face a quem te bate, e sim na lógica profana (bem mais gostosa?), aquela que entendeu que, se você tá na chuva, é pra se molhar.

Ele se encharca e não pede desculpas por existir e ser quem é. Chuta a porta e chuta o balde e ainda faz questão de chamar para si a autoria. Isso é de um atrevimento tremendo — e sabemos da potência genial que há na ousadia.

O que Guilherme escreve nos convoca, nos provoca, nos desloca, conceitos todos muito bonitos que faço virar verbo porque o movimento interessa mais — é ele, inclusive, que nos faz amar e (querer) mudar as coisas, naquela já batida mas mui verdadeira do meu querido Belchior.

Estar vivo, ser desvio, habitar as beiras — ou os (h)abismos — , fazer poesia das sacadas, ou das varandas, ou dos horizontes, ou das clausuras: é isso que Guilherme faz, que poesia é mosaico, arco-íris, lança, lança-perfume, teia de possibilidades. Viva!

(E feliz existência, poeta! Espero que este texto lhe chegue feito um singelo presente, assim como o seu chegou por aqui. Torço para que ele tenha acendido alguma coisa em pleno zênite, sol a pino mesmo se nublado desta abertura de semana).

Com açúcar e com afeto,

Ana C. Moura — Editora de Conteúdo da Fazia Poesia.

Em que momento da vida um sujeito pode afirmar que é um eu lírico, que faz poesia? Eu não tenho essa resposta, já adianto. Mas vou tentar, em algumas linhas, explicar o que me faz considerar que fiz poesia até aqui.

Meu ritmo de escrita é meio caótico, escrevo o que me dá na telha, depois venho construindo paredes debaixo. Este texto não vai fugir à regra.

No início, eu era uma criança — uma criança-viada, eu gosto de dizer sempre, embora isso talvez não seja relevante para todas as pessoas que me leem. Para mim e para a minha história com o papel e a caneta, é.

Essa criança tinha por volta dos 13 anos quando teve o primeiro contato com uma pessoa poeta — por assim dizer: uma pessoa que se dizia poeta. Como a grande maioria dos escritores conta, no meu caso esse primeiro contato se deu em uma aula de língua portuguesa, com a visita de alguém externo à realidade escolar (hoje, eu questiono muito isto: como muitas vezes menines precisam que um indivíduo com alguma autoridade externa ao habitual lhe diga que escrever é legal para que alguma fagulha se acenda; para mim, professoras deveriam ser as maiores autoridades nesse assunto; parece que não são).

De todo modo, voltando ao assunto (perdoem meus voos, eu sou passarinho livre e voo mesmo, sem dó de asa e sem cantar licença): aquela pessoa falou que escrevia poesia disse que tudo poderia ser matéria de poema, exemplificou com uma janela da sala de aula, no maior dos clichês, e cá estamos, não parei desde então.

Por bons anos (pelo menos 10), eu acreditava que o poeta precisava publicar para ser poeta. Entendamos, neste parágrafo, publicar como o ato de lançar um livro físico, com uma editora ou não, com alguns textos de sua autoria impressos nas páginas. Ok, hoje eu já sei que ser poeta talvez não tenha a ver com imprimir textos no papel. Talvez tenha a ver com imprimir o próprio discurso na vida das pessoas, construir sentido com elas. Quem lê e quem escreve são corresponsáveis pelos sentidos.

Eu publiquei meu primeiro livro em 2015, quase exatamente 10 anos depois de ter confidenciado o primeiro poemeto a uma contracapa de caderno. Aliás, eu não faço mais ideia do que escrevia nos primeiros textos. Algum pedaço de terra ou algum lixão a céu aberto por aí tragaram tudo, com alguma esperança.

Enfim, voltemos.

Meu primeiro livro foi um livro especial, eu gosto dele. Foi resultado de um concurso literário. Eis um elemento que me fez alçar alguns voos ainda imberbe e sem experiência. Participar, ganhando ou não, de premiações sempre foi relevante para o meu contexto de aprendizado enquanto escritor. Eu sempre fui adepto dessas seleções, de estar entre milhares de trabalhos, sob olhares cuidadosos de pareceristas (parece que preciso de aprovação, mas talvez precise de reconhecimento; piada à parte, acredito nos concursos sérios, que dão voz e vez para pessoas que de outro modo não alcançariam destaque).

Depois, fui só ladeira abaixo… Mentira, ando subindo e descendo com a poesia debaixo do braço. Publiquei mais algumas obras, com o fantasma inconsciente da criança-viada lá do começo sempre no meu cangote. Em 2017, foi a vez do segundo livro, todo voltado para questões sociopolíticas e econômicas. Nessa época eu já entendia possível a literatura de resistência.

Em 2020, me juntei a outros 14 escritores para escrever sobre o que a gente estava vivendo ali: uma pandemia ou, se me permitem, várias pandemias em uma. Era o que afligia 10 em cada 10 escritores — e artistas de modo geral. Ao mesmo tempo, eu trabalhava no âmbito local com outros fazedores de cultura em prol de uma realidade mais emergente: socorrer o artista que não tinha mais de onde tirar sustento naquela calamidade. Imagina só de repente você não poder mais ganhar o seu pão de cada dia porque não podia sair na rua? Pois é. Em 2020, eu fui conselheiro de cultura na minha cidade, para atender a essa emergência: aplicamos recursos e conseguimos distribuir dinheiro e dar algum alívio a mais de 100 artistas naquele ano. Não foi suficiente, mas foi alguma coisa. Dessas experiências, para mim fica claro que participar de projetos coletivos é imprescindível para um escritor — isso permite a troca, sem troca a gente corre o risco de contar sempre a mesma história.

Depois, a pandemia da covid-19 foi arrefecendo, e a vontade de escrever sobre ela também ficou menor. Então eu voltei para a minha programação normal: escrever o agora adulto-viado.

Em 2021, publiquei um livro independente, no Mês do Orgulho (yay!) — e, a propósito, estamos nele de novo. No mesmo ano, entrei para o time da Fazia Poesia, a FP, e passei a derrubar aqui poemas meus, que a galera sempre recebeu muito bem. Como eu sempre digo (nem sempre digo, mas sempre penso): fico onde sou bem recebido. Foi também em 2021, na FP, que participei de uma edição (a segunda, se não me engano) da Oficina de Haicai. Que experiência! Foi um divisor de águas na minha vidinha de poeta.

A participação na Oficina de Haicai foi tão relevante para a minha escrita que eu comecei a produzir esse tipo de poema obsessivamente. Daí para eu puxar o galho da cerejeira de Bashô para a minha proposta LGBTQIAP+ foi um pulo — passei a escrever uma variedade de haicai que para mim tinha tanto significado quanto a contemplação da natureza e o zenbudismo: o haicai com temática queer. Nesse contexto, cunhei o termo haiqueer como denominação dessa variedade e publiquei, em 2022, o livro Haiqueer, com o objetivo de registrar, historicamente, a minha incursão pelo gênero.

De lá para cá, tenho produzido outras coisas. Sempre escrevo sobre as minhas temáticas (a questão-viada) e sobre observações cotidianas. A experimentação nesse ambiente virtual de compartilhamento tem me proporcionado outros voos. E eu estou sempre ao sabor do vento nesse sentido.

Isto aqui foi um resumão. Eu não sou muito fã de escrever com formato, com organização temática, subtítulos, recuo, parágrafo, etc. Se ficou parecendo currículo, perdoem. Não foi essa a intenção, mas eu não conseguiria dizer quem fez poesia neste eu-sujeito-lírico sem mencionar os nós-travessias do percurso desse sujeito. Cada experiência pregressa me ensinou um pouco do que eu ofereço em termos artísticos agora.

Por terem lido, agradeço.

Té mais ver.

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