Quem Fez Poesia? #49 — Daniela Rezende

Confira as trajetórias e inspirações da poeta selecionada nesta temporada na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:
Eu sinto as palavras de Daniela como dedos, que nos montam os cacos fazendo mosaico, numa burilação acarinhada; como furacões, que nos desmontam e desmantelam, num desconcerto de ruínas; como grandes acontecimentos, que nos remontam a esquadros de um remoto controle.

No jogo de quebra-cabeça e de pique-pega que a poesia pode ser, a poeta não se furta de tocar na ferida, feito a crença cética de São Tomé de Caravaggio, de revirar visceralidades para extrair um elixir de água salgada: suor, lágrima, mar.

O que Daniela escreve tem consciência e sangue intencionalmente cênico, intencionalmente real. A autora é passageira e motorista pela vida e pelas vielas tortuosas da escrita, da poesia. Bebe suas sedes de outras fontes e, no rastro de suas referências e premeditações, amostra-se. Em cada palavra, no mistério da graça e da perdição, na graça do mistério de perder-se no caminho, na exibição desinibida das “mãos [que] abriam caminho/pela lambança das carnes”, para acionar alguns de seus versos.

Assim, é entoando a canção de mais uma da família Assumpção, Anelis, que eu termino de devorar tudo o que Daniela escreve: “A mão de Deus ou do acaso/ reparte em fatias/ açúcar branco ou mascavo/quem come se delicia”.

Sinta-se exortada, pessoa leitora, a devorar tudo o que Daniela escreve também.

Com açúcar e com afeto,

Ana C. Moura — Editora de Projetos da Fazia Poesia.

Janeiro

Dizem que, no Brasil, o ano só começa depois do Carnaval.
Nesta história, a minha história, isso pode ser tomado como verdade.

Fevereiro

O começo, na verdade, raramente pode ser definido como um ponto específico que demarca o início concreto de uma trajetória. Isso, ao menos, não no que diz respeito a experiência humana.

Mas o meu começo, como escritora, como poeta, talvez possa ser demarcado por um ponto muito específico no tempo e no espaço: eu tinha 28 anos de idade, estava sentada na mesa da cozinha da casa de meus pais, na manhã de um dia do mês de fevereiro, e havia levado um grande pé na bunda, de um dos maiores amores que eu já tive a chance de ter nessa vida. Um pé na bunda não, um ghosting — como os jovens dessa geração gostam de dizer — , que me fez sentir a vontade avassaladora e incompreensível de escrever.

E tudo começou com esse texto dolorido, com esse texto que era quase uma carta, escrito nessa manhã gloriosa de fevereiro, no qual eu expunha uma série de sentimentos muito vívidos e muito reais, para um destinatário/leitor ideal, mas no qual eu também já — de uma forma talvez inconsciente — ficcionalizava um tanto do que escrevia.

Março, abril, maio, junho, julho e agosto

Ainda muito abalada com os cacos de minha vida sentimental espatifados aos meus pés e o caos de minha vida prática, continuei escrevendo uma série de textos tristes e altamente confessionais que publicava, vez ou outra, nas redes sociais e tinha, vez ou outra, a leitura de algum amigo como retorno.

A primeira vez que escrevi um poema, na vida, deve ter sido em meados de março desse mesmo ano. Ele tinha por título “Brancos”, e era composto em primeira pessoa, em versos brancos e livres, sem rimas, e com muitas repetições e aliterações — o tipo de construção poética que, ainda hoje, emprego em minha escrita com constância e propósito, olhando sempre de rabo de olho para aquele Manuel Bandeira, aquela Gertrude Stein, aquela Angélica Freitas e para tantos outros poetas que dormem na minha estante.

Nesse ínterim, comecei e abandonei, comecei e abandonei, comecei e abandonei vezes sem fim um projeto (vários projetos) de romance.

Sempre achei que eu fosse uma pessoa da prosa. Sempre achei que a minha vida valeria uma longa narrativa.

Setembro

Depois de mais de um ano escrevendo meses a fio, decidi arriscar e, timidamente, comecei a enviar textos meus para revistas virtuais. Virar “poeta”, essa coisa diáfana, foi quase um acaso: os dois primeiros textos que publiquei, no mês de setembro do ano seguinte, foram duas prosas, talvez poéticas, mas ainda ancoradas em tudo o que não era o verso.

Começando já como uma “autora velha” ou, dizendo sem etarismo, “começando tardiamente de acordo com a visão de alguns”, eu nunca pensei que aqueles dois textos iniciais, publicados em uma revista on-line de uma livraria de minha cidade natal, poderiam de fato me levar a outros lugares.

Sinceramente, eu só comemorava o fato de alguém querer lê-los — e, quem sabe, gostar da experiência da leitura. Mas esses textos acabaram me levando a outras publicações, uma conduzindo à outra, como uma série de miçangas em um fio que vamos montando sem ter a certeza, apenas uma vaga noção, do resultado.

Outubro e novembro

Lembro-me de ler muito nesses meses. Lembro-me de escrever muito — cada vez mais poesia. E de enviar, vezes sem fim, originais para chamadas de publicação. Lembro-me também de que, nessa época, comecei a rascunhar e organizar um livro de poemas, rejeitado em mais de uma ocasião, por mais de uma editora.

Dezembro

Tudo termina começando de novo. Ser escritora, ser poeta, é andar em círculos no meio das palavras, carregando mais palavras nos bolsos.

Quando dei por mim, tinha publicado outros textos em revistas; tinha feito videopoemas; tinha escrito mais e mais; tinha me candidatado para cursos de escrita; e tinha, por fim, me inscrito em um portal de poesia: este, a Fazia Poesia.

Janeiro e fevereiro (e tudo novo de novo)

Foi quando adentrei como colaboradora e poeta (oficialmente poeta) neste portal que, creio, um profissionalismo maior começou a tomar corpo e consciência em minhas produções.

Percebi, de forma explícita com a FP, a presença de uma rede de pessoas muito diversas com aspirações e desejos muito semelhantes aos meus; percebi também a existência de outras formas de produção, circulação e consumo da poesia contemporânea para além do livro físico e das publicações impressas. Essas foram percepções importantes, em grande medida, para a ampliação das minhas próprias expectativas enquanto escritora e poeta.

Em suma, todo o caminho percorrido até aqui, de fevereiro a fevereiro, apenas me ensinou muito mais do que, um dia, eu imaginaria, como produtora e autora de textos.

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