Quem Fez Poesia? #47 — José Tadeu Gobbi

Confira as trajetórias e inspirações do poeta selecionado nesta temporada na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:
Há certa acidez (autos)sarcástica nas palavras que José Tadeu usa neste texto. Talvez elas induzam você, que o lê, a pensar o poeta apenas pelas lentes da rigidez crítica que aparentemente ele mesmo (nos) apresenta, mas isso com certeza seria um equívoco, um engano.

Porque, embora tenha, sim, uma adaga afiada pronta para des(a)fiar suas percepções do mundo, José Tadeu também carrega linha, agulha e uma dose admirável de disposição para tecer novas e carinhosas costuras — ainda que esse processo possa render algumas alfinetadas à trama, é verdade.

Há sonho e leveza no que José Tadeu escreve, neste artigo e em seus poemas (leia, por exemplo, Barricada, do autor, e talvez você compreenda por que eu disse isso). As palavras podem ser casca dura com a qual fazemos armaduras para camuflar nossa timidez ou disfarçar nossas sombras, mas é também nelas que nos desarmamos para amar e revelar os mil e um tons de luz e escuridão. As palavras de José Tadeu me confirmam isso e o fazem com uma simplicidade sincera.

É dádiva — e presente, para os que acompanham — alguém que sabe fazer o jogo do mostra-esconde com consciência (inclusive do mistério) e com a franqueza de quem coleciona memórias, experiências e uma abundante quantidade de referências culturais e saberes tantos pelo caminho.

Ler as palavras-penumbra-bomba-relógio do poeta-publicitário-duvidador-pessoa-para-além-de-qualquer-rótulo me traz ao fino fio da reminiscência aquela do Chico, aquela que diz: “Roda mundo, roda-gigante/Rodamoinho, roda pião/O tempo rodou num instante/Nas voltas do meu coração”. Desconfio de que ela seja elo e fio condutor também para o que o autor escreve.

Que você possa lembrar-se do caleidoscópio que somos nós, seres humanos. Que recupere o fôlego para fazer desbravamentos e capturar, deixando livre, as palavras de José Tadeu, José Tadeu em suas palavras, em todas as camadas presentes nesses seres simbióticos.

Um viva às contradições e complexidades que nos constituem e nos desconstituem.

Com açúcar e com afeto,
Ana C Moura— Editora de Projetos da Fazia Poesia.

Na bio da minha página no Medium, eu me descrevi assim: “Publicitário, um brasileiro que crê em valores republicanos e num país que valorize honestidade, competência e talento. Bom te ver por aqui”. Uma declaração dessa soa meio panfletária, parece coisa de um personagem de Cervantes, expondo sua insânia num país que produz uma sociedade que acredita na esperteza como processo civilizatório, tem pouca fé na honestidade, desconfia da competência e não valoriza o talento. Sou publicitário e interpretar as aspirações humanas está entre as habilidades de um publicitário. Precisamos conhecer a alma do nosso público, conhecer suas necessidades e desejos, saber da Pirâmide de Maslow, da jornada do consumidor, interpretar pesquisas qualitativas e quantitativas, ter lido mestres como Philip Kotler (90), entender o que é ZMOT e a estratégia do Oceano Azul, enfim, tudo isso é parte do métier.

Sou formado em publicidade pela Universidade Metodista, fiz pós-graduação em Marketing na ESPM e concluí recentemente um MBA em marketing digital pela FGV, além de muitos cursos de especialização e aperfeiçoamento.
Mesmo com todo conhecimento adquirido, ainda me sinto despreparado para enfrentar o que Joseph Schumpeter (1883–1950) definiu no início do século passado como destruição criativa. O mundo vive ciclos econômicos, nos quais a inovação, o progresso e a tecnologia alteram todo o processo e a estrutura do sistema produtivo e econômico. Grosso modo, o carro movido a motor substituiu a carroça movida a tração animal e destruiu toda cadeia produtiva e econômica que girava em torno desse tipo de transporte. Em todos os setores de atividade humana, esse fenômeno ocorre. É uma roda viva.

A gênese dos caminhos

Hoje sou publicitário e, na minha atividade profissional, a comunicação e as palavras são matéria-prima essencial. Desde a minha primeira Olivetti Lettera 35 até meu último laptop, escrever foi sempre um exercício de conexão com o mundo.

Fusão José Tadeu Gobbi

O gatilho desse processo foi um evento pueril. Na escola, eu observava uma conversa entre duas amigas e elas falavam sobre o bandô que a mãe de uma delas tinha colocado na sala. Eu não sabia o que era bandô e, para mim, não saber me colocava fora do planeta. Parece besteira, mas é difícil imaginar como isso é castrador para um pré-adolescente. Eu não tinha repertório para conversar com as meninas que me interessavam, então comecei a ler e a escrever obsessivamente.

Em casa, minha mãe nunca forçou meus irmãos e eu a ler, mas enchia a casa de livros. Tínhamos poucos brinquedos, mas muitos livros, e era deles que tirávamos nossas aventuras. Convivi desde cedo com grandes autores, com poetas e com dicionários. Aprendi a amar os dicionários; quantos verbetes, quanta informação, que maravilha era aquela usina de significados, quanta matéria-prima para construir narrativas e histórias. Cada novo autor que cruzava meu caminho abria novos horizontes, era como ver o mundo pelos olhos de outros e assimilar realidades diversas da minha.

Young JTG

Desde muito cedo, até por timidez, minha melhor atividade foi escrever. Acho que conseguia ter uma relação mais amigável e menos conflitiva com o mundo. Tinha essa dor de viver, de não entender o processo, de ser triturado pelas circunstâncias, pelo modelo, pelas condições sociais, econômicas, familiares, e os livros eram um portal para o mundo, a exemplo da obra O Existencialismo é um humanismo, de Jean Paul Sartre (1905–1980), que me mostrou que eu estava condenado a ser livre. “O homem é um projeto de si mesmo condenado a liberdade”. Essa síntese mostrava que eu construo minha trajetória no mundo. Minhas escolhas, meu destino.

Eu sou poeta e não nego a minha raça
Faço versos por pirraça e também por precisão
De pé quebrado, verso branco, rima rica
Negaceio, dou a dica, tenho a minha solução.
Lero-Lero, de Cacaso (Antônio Carlos de Brito, 1944–1987)

A poesia entrou na minha vida como uma forma de interpretar o mundo. Poesia é linguagem, um idioma universal. Você pode ler Maiakovski (1893–1930) ou Bertold Brecht (1898–1956), pode ler Fernando Pessoa (1888–1935) ou Paulo Leminski (1944–1989), e vai sempre estar diante do mesmo desafio: tudo na poesia reluz e tudo nela é penumbra, tudo nela é silêncio e tudo nela é explosão. Sou do tipo que acredita que a poesia é como uma kalashnikov carregada e pronta para disparar. É poder.

A imensa sociedade dos poetas mortos

Acho os grandes poetas seres celestiais que guardam os segredos do mundo e assistem, distantes, aos conflitos humanos, transformando em palavras nossas angústias e emoções. Poucos sabem que um poeta, Dante Alighieri (1265–1321), foi o pai de um idioma nacional europeu, o italiano, e sua obra-prima, La Divina Commedia, foi o berço do idioma hoje falado na Itália.
Quem nunca se emocionou lendo Pablo Neruda (1904–1973) ou Florbela Espanca (1894–1930)? As nacionalidades se dissolvem no poema, mas ainda ficam patentes, como uma moldura, nas referências das realidades originárias. Lendo poetas tão diversos, como não se identificar quando Adélia Prado (86) diz em seu poema “Com licença poética”: “não sou feia que não possa casar”? Quem não viveu as agruras de um guerrilheiro vietcongue no delta do Rio Mekong no poema “Por você por mim”, no livro Dentro da noite veloz, de Ferreira Gullar (1930–2016), não sentiu a força de suas raízes quando leu “O Tejo” de Fernando Pessoa (1888–1935), não descobriu a tremenda odisseia humana do brasileiro nos versos de Patativa de Assaré (Antônio Gonçalves da Silva, 1909–2002)?

A poesia perpassa todas as demais manifestações artísticas e é como a sensibilidade humana se expõe, como percebemos e nos manifestamos sobre o mundo que nos cerca desde a esfera das relações pessoais até a relação de cada um com a natureza.

Basta ouvir Astor Piazzolla (1921–1992) e Amelita Baltar (81) interpretando a alma portenha em “Balada para un Loco” ou ler em voz alta o magnífico poema “Los Hermanos”, de Atahualpa Yupanqui (1908–1992), que virou um hino humanista. Como não ver poesia nas descrições de João Guimarães Rosa (1908–1967) em Grande Sertões: Veredas? Como ver as veredas e os buritizais de suas paisagens e não se apaixonar por Diadorim? Quem pode negar que Clarice Lispector (1920–1977) escreveu um maravilhoso e longo poema no livro Água Viva?

Não gosto de rótulos, portanto não sei se o que escrevo é um diário de bordo de minha passagem por este planeta em que reúno minhas percepções do mundo que me cerca e das emoções que me consomem ou se, de alguma forma, tiro retratos das circunstâncias para poder conversar com “as meninas que me interessavam” da minha fase escolar.

Fico com o poema “Zoológico humano” de Alex Polari de Alverga (72), em um livro publicado pela Anistia Internacional que começava assim: “O que somos é algo distante do que fomos ou pensamos ser…”. Fico também com o refrão de uma composição de Jorge Drexler (57), “Milonga del moro judio”, que diz: “Eu sou um mouro judeu / que vive com os cristãos / não sei que Deus é o meu / nem quais são os meus irmãos”.

Meu encontro com a Fazia Poesia

Quando meus caminhos se cruzaram com o portal Fazia Poesia, sentia falta dos saraus, dos encontros, dos concursos e da troca de experiências. Já tinha entrado no Medium e usava a plataforma como um blog, publicando os poemas que tinha na gaveta e produzindo outros. Minha ideia original era concentrar os artigos que escrevia para a mídia especializada da minha área. Passei a pesquisar a plataforma e me deparei com a Fazia Poesia. Acompanhei suas publicações e vi que era uma publicação com alguma organização, projeto gráfico e projeto editorial razoavelmente bem estruturados e levado por gente séria e bem-intencionada. A FP era uma plataforma, uma vitrine na qual poetas de todas as gerações e todos os estilos podiam se encontrar. Vi que abriram uma seleção de novos escritores e resolvi tentar. Fizeram a besteira de me aceitar no grupo. Cá estou na companhia deste povo que, como eu, é artífice da palavra.

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