Quem Fez Poesia? #45 — Heberton Baptistela

Confira as trajetórias e inspirações do poeta selecionado nesta temporada na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:
O Heberton é uma força da natureza. Acho impressionante e genial como uma pessoa consegue transitar por tanto, com tanta desenvoltura e destreza, tão camaleonicamente.

Fazendo questão de cultivar, despretensiosa e deliberadamente, o convívio da elevação erudita e da elevação popular, ora manejando conceitos complexos com didatismo, ora escrevendo como quem troca altas ideias contigo na mesa de um bar (de um mundo sem pandemia, assim espero), o autor nos mostra que as fronteiras entre as duas e muito mais possibilidades de existência são frágeis, se é que existentes, e que é uma bobagem reduzir-se a uma coisa só. Ser inteiro é ser mosaico, e mosaicos só se formam a partir de estilhaços, de fragmentos do que fomos, do que somos, do que seremos (às vezes, tudo isso ao mesmo tempo).

É com malemolência que Heberton manipula as palavras, em prosa, em poesia, em todas as outras possibilidades de jogar, brincar, subverter a linguagem a seu favor — ou propositalmente contra si, em uma troça irônica que beira ao deboche em sua mais refinada forma. Uma proeza de uns poucos que sabem tirá-las para dançar, para bailar um tango argentino, um samba de gafieira, uma sequência de passos que ainda não têm nome.

Em um dos seus versos (queria colocar a referência aqui, mas essa vou ficar devendo), Tatiana Nascimento nos diz que o amor é uma tecnologia de guerra. A palavra talvez seja também e, se for mesmo, Heberton talvez seja um estrategista da palavra: alguém que a usa de arma e de escudo; alguém que ao mesmo tempo é atingido por ela, ela que, por sua vez, desfere golpes contra a armadura; alguém que é o corpo ferido e é também quem forja armaduras, guerreiros, arsenais e campos de batalha; alguém que recusa espólios e glórias, que se rende profundo à poesia e a todos os desdobramentos que surjam dela; alguém que vive altercado com a palavra, abraçando o inconformismo inevitável, a inevitabilidade inconformista, feito o eu lírico daquele poema do Drummond, que reconhece que lutar contra elas “é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã.”

Entre todas as possibilidades da palavra, é dádiva e deslumbre ver os criamentos da pessoa escritante que é o Heberton (leia o texto, e você, pessoa leitora, entenderá o emprego dessas palavras). Que nunca lhe faltem verbo nem fôlego para continuar escrevendo.

E ah, só para que não restem dúvidas, querido: do seu convite público, a minha resposta pública de que o desejo de jogar versos com você é muito recíproco, que honra seria a minha. Do seu elogio, de novo a reciprocidade e a gratidão sincera pelo seu olhar generoso.

Com açúcar e com afeto,
Ana C Moura— Editora de Projetos da Fazia Poesia.

Do relacionamento sério (nem tão sério assim) com a literatura

O que importa na biografia de um escritor a não ser a sua bibliografia?
Sua vida explica sua arte? Sua arte explica sua vida? Ou ambas só se explicam para desexplicar-se? É o que um autor escreve que deixa o que ele viveu menos ou mais interessante? Ou é o que o autor vive que deixa o que escreveu mais ou menos curioso? O que quer saber do autor? Seu nome? Sua idade? Seu sexo? Sua bandeira política? Suas virtudes? Seus pecados? Suas contradições? Talvez devesse expor aqui meus diplomas? Quem sabe meus prêmios? Talvez minhas sagrações e consagrações literárias?

A real é que nada disso importa, pois, quando se trata de literatura, ou o leitor abre o livro e fica, ou fecha-o e parte. Se o verso é sem força e não sustenta o livro aberto, que importância tem a vitrine biográfica? Se as primeiras frases não cortam, por que, diabos, terminar a história? Pensando nisso, eu me reservo a dizer que toda a minha vida está na minha literatura e tudo o que não for literatura não interessa. Ou será que interessa?

Gosto de pensar que sou (embora não seja) o poeta das perguntas. Ora, onde está a verdade? Oxe, a verdade está na pergunta. Como? Onde? Quem? Quando? Por quê? Perceba: a resposta muda, a pergunta não. É por isso que começo perguntando e volto a perguntar: qual relação o poeta pode ter com a literatura senão a de ler para sempre? Senão a de reescrever para sempre? Senão a de ler e reler; ler e desler; ler e transler? Ler o que é literatura e, sobretudo, o que não é literatura. Pode haver outro relacionamento que não esse? Lógico que pode, mas o meu com a literatura é esse. Leio enquanto indago: sei? Escrevo no mesmo passo em que pergunto: não sei? Reescrevo à medida que volto a inquirir: sei? Não sei! Não sei se só sei que nada sei e nem disso tenho certeza.

Em verdade, sou um analfabeto poético. Um analfabeto poético é um escritor em formação. E o escritor em formação só se forma quando morre. Mas, enquanto não morre, lê. Lê e rouba. E, por isso, como Manoel de Barros roubou de Rimbaud, eu roubo de Manoel de Barros. Roubo de Barros e roubo de Lispector. Roubo de Neruda e roubo de Bashô. Roubo de Florbela e roubo de Brecht. Dos gregos e dos troianos, dos chineses ou dos romanos, lusitanos, africanos, uruguaios, russos, japoneses; roubo, roubo, roubo…

Roubo de grandes estilistas dos quatro cantos do mundo, de todos os mundos do tempo. Roubo de grandes estilos para edificar meu próprio estilo. Como a ocasião faz o ladrão, o estilo faz o poeta. E um dia ainda serei um bom ladrão. Até lá, a leitora, o leitor, se achar que deve, disque à polícia e assine o B.O.

Do poema “Quando você se lê e ri pra não chorar”:

Estou dizendo: a gente se engalana:
anota, escreve e acha que está bom –
acha que está entrando no esquema,
chegando aos pés, à sombra de Drummond.
Mas Drummond era poeta maior
e João Cabral era poeta maiúsculo,
se Bandeira era poeta menor
a gente — Vichi! — não é nem minúsculo.

*

Do poema “Diante das retinas”:

a minha verdade é minha e posso vê-la:
todas as noções de glória são falácias!
Ser poeta é ser mais um: extinta estrela:
luz sumindo e se apagando entre as galáxias.

Dos saudosos primeiros encontros com a literatura

Antes de ser escritor, contista, poeta, etc., sou um leitor. E isso só se dá assim, porque tive um duplo primeiro encontro com a literatura. O primeiro primeiro encontro é prosaico. O segundo primeiro encontro é poético.

O primeiro primeiro encontro foi enquanto leitor, acho que por volta dos dez anos, não me recordo com precisão. O lance é que veio parar nas minhas mãos (não lembro como, nem por quê) o livro Pollyana, da autora Eleanor H. Porter. Ler aquele livro foi como ser espirrado do útero uma segunda vez.
Para cima, para baixo, para o lado e para todos os outros cantos, o menino que fui corria a jogar o bendito jogo do contente, da tal personagem Pollyanna. Mais do que isso: quando terminei de ler aquele livro numa sentada, descobri que ler era legal. Descobri que também podia gostar de ler. Só que A metamorfose, do Kafka (foi o segundo livro que sentei para ler), me deixou em choque, o que me fez botar essa descoberta em xeque. Quando li a obra kafkiana e não entendi nada, quase desgostei de ler. Mas só quase. Fui entender a alegoria metamórfica de Gregor Samsa apenas depois de ter entrado na faculdade. Ainda bem que o primeiro encontro é que é o ferro de marcar, de tal maneira que o jogo do contente da menina Pollyanna fez de mim o leitor que sou até hoje.

O meu primeiro segundo encontro com a literatura só aconteceu porque componho. Sou músico e letrista. Foi para melhorar as letras das minhas canções que comecei a escrever de fato, pelo que esse foi um encontro enquanto escritor. Eu precisava saber como os letristas da Bossa Nova e MPB escreviam suas letras tão bem. E, lógico, não tinha outro lugar para encontrar esse como senão na literatura. Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Rita Lee, Gabriel O Pensador, Chico César, Vanessa da Mata, Arnaldo Antunes, Fernanda Takai e todos esses nomes, que escreveram e escrevem letras tão maravilhosas, eram todos íntimos da literatura, todos íntimos da poesia. Quando percebi isso, me apaixonei. Aí, era-se uma vez e vivi feliz para sempre. Até agora, pelo menos.

Da ciência desse estranho bicho chamado inspiração

Não nego que a inspiração exista. Ponto. Mas até aí um gari, um pedreiro, um boia-fria, uma doméstica, um design gráfico, um caixa de supermercado, um jardineiro, um professor ou qualquer outra pessoa ou profissional exercendo sua profissão podem se sentir inspirados a fazer o que sabem fazer da melhor maneira que puderem.

A inspiração não é uma condição dos artistas. A inspiração não é uma aura que paira em volta dos gênios. A inspiração não é um clarão que só ilumina os chamados, nem uma auréola que só flutua sobre a cabeça dos escolhidos. Muito pelo contrário, é algo terreno. Raro, sim. Ocasional, sim. Intermitente, sim. Mas terreno. Por isso mesmo, me arrisco a dizer que o emprego do efêmero instante de visitação da força inspiradora é tão mais bem-aproveitado quanto maior for o grau de ciência e consciência das técnicas de produção dominadas por quem procura produzir o que produz. Dizendo de uma maneira mais acessível e já aplicando a máxima ao ofício do poeta, que é o de escrever: à medida que o domínio das técnicas de escrita aumenta, maior é o aproveitamento da inspiração de quem escreve. Assim sendo, penso que sou menos espontâneo e mais calculista. Se, na bateia de escrever, ocorre de emergir alguma matéria bruta na superfície do raso lago dos meus textos, é só para ser lapidada incansavelmente. Só assim (e nem sempre) consigo alçar alguma palavra ao seu grau máximo de sentido.

Para alguns poetas, escrever poesia se assemelha a uma febre que chega sem avisar; para outros, acontece como um susto que se toma de uma súbita vertigem. Para mim, não. Não me permito sentir coceiras. Não me dou bem com o acaso. Não espero que a poesia chegue, até porque dificilmente a poesia vem até mim: sou eu quem tem de sair em sua busca. E aí muitas manifestações da linguagem servem de amostra sob a lente da lupa investigatória: uma palavra nova, um tema pouco versado, uma ideia que surgiu em meio a uma caminhada, uma frase escutada no ponto de ônibus, uma conversa banal com os amigos.

Em particular, o que melhor me energiza os dedos para que corram sobre as teclas são as leituras de todos os livros que eu puder ler: poesia, conto, crônica, novela, roteiro, romance, crítica, teoria, não ficção, reportagem, filosofia, história, geografia, física, matemática, obra canônica, periférica, local, nacional, internacional, de massa, de nicho, de autoajuda, texto bom, texto ruim, enfim, ad infinitum, etc. A fronteira é só nos mapas, já a inspiração é sempre farejável e quem procura inspirar-se é sempre um farejante. Então, preciso sair à caça, mantendo em mente que, na grande maioria das ocasiões, não encontraremos a inspiração como e onde a desejamos. Ainda assim, é preciso sair em seu encalço. Saia!

Do processamento criatório — parte I: método e teoria

O processamento criatório de cada escritor é idiossincrático. O que funciona para A não funciona para B , tanto quanto o anel que tu me deste e que não entrou no dedo de Y agora cai como uma luva nas mãos de Z, e assim em diante. A poesia não é como a ciência, o método nunca é universal e as leis que regem a física e a metafísica do universo de um escritor só têm como via de regra não se aplicarem ao universo de um escritor outro.

Não seria falso dizer que, para saber fazer algo, é preciso saber o que se faz. Dessa forma, é possível indagar: os poetas sabem o que é poesia? A poesia é sentimento? É inspiração? É busca de sentido? É um desperdício? É instrumento lúdico? É delírio da linguagem? É mais assim? É menos assado? Mais aqui? Mais acolá? Talvez seja tudo isso e algo além.

Pra mim, poesia é mesmo como fazer o bem: é um fim em si mesmo, do qual não se espera algo em troca. Não consigo escrever poesia sem me colocar no lugar do outro. Mesmo errando muito (e como sou um ser errante, cê é louco!), tento sempre me colocar no lugar do próximo.

Não gosto de escrever sobre mim e, ainda que haja algo de mim no que escrevo (pois sempre há algo de nós no que escrevemos), a escrita é sempre para desvelar e entender o outro, o entorno, o circundante. Se não dou conta de cantar as riquezas que estão à minha volta, me sinto muito pobre. Talvez seja por isso esse meu vício em haicai e a sua constante descentralização do eu.

“Onde a velha varre
e onde a velha não varre
pétalas no chão.”

Também gosto de escrever por temas. Sou um escritor planejador. Não deixo espaço para o aleatório. As palavras estão lá porque têm de estar. Se não têm, não estão. E, se estão não tendo de estar, aí é reescrita, reescrita, reescrita. Porque escrever é reescrever, e o texto nunca fica ou está pronto em definitivo.

Se tenho uma obstinação é a de chegar à arquitetura, à engenharia, à matemática da poesia, tanto quanto Fibonacci chegou à poesia da matemática. Mas não, e nunca, como quem reduz o texto a um mero jogo de palavras, e sim, e sempre, como numa eterna obsessão de quem procura encontrar as melhores palavras para dispô-las na melhor ordem possível.

Por exemplo, ainda quero escrever um poema sobre a proporção áurea e o número de ouro, mas é um tema dificílimo. Então, por ora, vou escrevendo textos sobre temas mais urgentes e, talvez, menos complexos, como o tema da pós-verdade:

Do poema “Pós-verdade”:

Me encontro dentro de uma bolha
e aqui explica-se em segundos
o que em milênios não foi entendido:
as sete leis para encontrar o amor eterno;
os cinco passos para jamais envelhecer;
os três segredos para enganar a morte.
Aqui a informação trafega e distrai.
Aqui a desinformação trafica e destrói.
Aqui é preferível a versão de fotos histéricas,
o que serve como aversão aos fatos históricos.

Entretanto, há também esse eterno voltar aos temas gastos para gastá-los ainda mais, tais como o amor, a morte, o ego, a metafísica, o infinito. Como também sou feito de átomos e células, líquidos e secreções, carteira de identidade e roupas do corpo, não me é dado fugir do que é humano. Assim, se o que é humano urge, escrevo:

De “Poema de cautela”:

Não deixe amar
ficar amargo
nem o tesão
virar tensão,
tão pouco o ciúme
fazer-se azedume,
pois se o mau humor
se torna mau amor,
quem te afaga,
se afoga
e toda intimidade
passa a intimidar.

Do processamento criatório — parte II: laboratórios e práticas

Laboratório nº 1: utensílios, pesquisas, estudos
Façamos um pequeno exercício parabólico: um médico entra na sala de cirurgia para fazer uma dada operação, mas, quando se encontra de frente para o paciente, já no leito operatório, percebe que está sem tesoura cirúrgica e sem bisturi. Pior que isso: o médico até segura nas mãos o bisturi e a tesoura; no entanto, não sabe como usá-los.

Perdi a conta de quantas vezes já me flagrei nessas situações. Não que eu seja médico, mas, como escritor, é muito fácil querer expressar uma frase ou um verso, e não encontrar os meios ou os modos pelos quais seria possível fazê-lo. Por isso, os meus processamentos de criar o texto estão fortemente carregados com os estudos acerca da teoria narrativa do romance e do conto, da teoria poética acerca da metrificação e do ritmo do verso, das leituras dos processos criativos dos autores que admiro, do debruçamento sobre as figuras de linguagem, do aprendizado constante sobre morfologia, semântica, sintaxe, lexicologia, estilística da língua portuguesa, falada e escrita. Necessito dos utensílios de escrever dispostos onde eu possa vê-los. Careço saber utilizar essas ferramentas de operar a língua. Preciso desses recursos tanto quanto um cirurgião precisa da tesoura e do bisturi.

Laboratório nº 2: pinça metálica de pescar paráfrases
A paráfrase é o meu segundo laboratório. E o lance com a paráfrase é que é possível parafrasear tudo e todos. Isto é, desde que seja linguagem, dá para parafrasear. Pode-se gostar de um autor e parafrasear uma de suas ideias, ou um verso de uma canção ou de um poema que se goste, mas também é possível parafrasear um parente, um amigo, um slogan, um ditado popular, um pedaço de uma conversa que não se devia ouvir, mas se ouviu. Essa é a beleza da paráfrase, ela é plástica, moldável, quase líquida, e pode ser exercitada, pinçada e pescada em qualquer lugar da linguagem. Ela serve muito para aquelas ocasiões nas quais o bloqueio criativo não nos deixa velejar pelas asas do poético. Nessas horas, vá de paráfrase. Afinal, quem não tem chão voa com jato.

Laboratório nº 3: balança de precisar os paranauês do pastiche
Eu pasticho tanto que poderia abrir uma pasticharia. Não que os meus pastiches sejam bons, mas eu tento. Só que o laboratório de pastichar tem utensílios mais complexos que o laboratório de parafrasear, porque no pastiche um escritor imita abertamente o estilo de um outro escritor, e isso é bem difícil de fazer. Difícil, sim; impossível, não. E o mais interessante da tentativa pastichante é que ela vai, imitação a imitação, te dando mais desenvoltura poética ao longo das tentativas, pois você pratica o verso metrificado, o verso livre, o verso preso, o verso branco, o verso preto, todos os tipos de verso.

Mas repare que: um pastiche não é um papagaio que repete o que um escritor escreveu. O nome desse papagaio aí é plágio. Há, então, uma diferença substancial: o pastiche não repete o que um escritor escreveu, o pastiche procura imitar como um escritor escreve. É equivalente ao próprio escritor ter dito algo que nunca pôde dizer, porque foi você quem disse algo como se o escritor o tivesse dito. É uma linha tênue feito a do slackline, eu sei, mas é deveras divertido. E, além de divertido, é instrutivo. A mim, pelo menos, o pastiche instrui muito, pois, quando pasticho um dado escritor, consigo observar as possibilidades da língua materna: até onde vão os limites dos significados e significantes, quais estruturas sintáticas a língua aceita, como é possível modelar a estrutura morfológica das palavras, e assim vai… Marcel Proust foi um grande pasticheiro. Ele pastichou grandes autores da literatura e também os contemporâneos de sua época. O autor de Em busca do tempo perdido foi quem me ensinou a precisar os paranauês do pastiche.

Do poema “Pastiche voluntário a Melo Neto”:

De novo se volve à verve dos versos
a severina navalha. Mas uma navalha,
ainda que navalha voragem, não vale
sozinha: ela precisará de outras navalhas:
de uma que devore no metal do verbo
o que é víscera e de outra que nivele
no fio da palavra o que é ventre e ovário,
e de varias e varias outras navalhas vivas
que viajem livres com navalhas novas
para que sempre se vá desenvolvendo
esta vulcânica árvore de vozes: o verso.

Laboratório nº 4: os tubos de ensaios das primeiras paródias
Queria muito saber parodiar, só que não sei. A paródia é duas vezes mais difícil que o pastiche, porque, nela, além de pastichar um escritor, temos ainda de ser engraçados. E fazer alguém rir sem ser espontâneo, piegas ou jocoso e enquanto se simula a voz de um autor é muito mais difícil que só imitar o estilo de escrita de alguém. Confesso que visito esse ateliê de criamentos menos do que gostaria, pois a porta desse laboratório não se abre necessariamente para mim, mas para uma espécie de pseudo-heterônimo macarrônico que teve a pachorra de se autonomear Robardo Portunhol. Como não tenho mais idade de ter um amigo imaginário, tenho em Robardo um inimigo imobiliário que me aluga as ideias e fica (como ele mesmo costuma repetir) me orelhando de graça. Esse químico quimérico que me fica garimpando paródias no laboratório da cabeça, mais do que um poliglota, é um polimbróglio, pois mistura português com espanhol para tirar sarro de outros escritores. Pedóname lo bizzaro del lá frase: encontré en mí el mi munstro.

Da paródia “Razón de rir-se (O a maneiré de Leminské)”:

Yo escribo y pranto.
Lo pranto és para rir-se de mí.
Escribo poroque no soy un santo
Y tonto éres quien no ri de sí:
La hiena vivi riendo,
Los babuinos juegan su mierda,
Jo soy diestro, pero
escribo con la mano esquierda;

*

Da paródia “Motivación (O a maneiré de Meirelê)”:

Si tengo ideas de genio o de gerico,
si soy moderno, si soy parnaso,
no sé. No sé si orino en un penico
o en un vaso.
Se que espanto los lectores tudo
con mi poesía desiarrolliada
y un dia se que yo seré mudo:
de nada.

Confesso que esses textos paródicos não são o tipo de coisa que alguém vá publicar em livro, mas, como mecanismo deslúdico de exercitar os criamentos, até que é praticável. Bernardo Guimarães foi um grande parodiador. Seu poema “O Elixir do Pajé” o prova. Procuro aprender com Bernardo.

Laboratório nº 5: pipeta graduada em traduções
A tradução é, talvez, o maior e mais enigmático laboratório de escrita criativa onde um escritor possa entrar. Na tradução, não dá para pastichar, não dá para parodiar, dá só, quando muito, para parafrasear (e olha lá), pois o tradutor tenta (na grande maioria das vezes) ser fiel ao que o escritor original escreveu. Só que o que o autor original escreveu está escrito em outra língua, cujos mecanismos linguísticos não são os mesmos da língua materna do tradutor. É como se um físico tentasse traduzir o universo em números, e não conseguisse porque os cálculos, na grande maioria das contas, não batem.

Apesar dos pesares, a tradução oferece, a quem procura traduzir, possibilidades linguísticas novas e inéditas, justamente por se tratar de textos em outra língua. Admito sem vergonha alguma que ainda estou, bem devagarinho, virando a chave da porta desse laboratório e só dando aquela espiadela dentro: tento, atualmente, traduzir um livro de poemas chamado Condição de mulher, da poeta uruguaia Cristina Peri Rossi, o que é dificultoso ao quadrado, pois meu espanhol não é lá essas coisas e também não sou mulher. Mas, se você lê em espanhol, amigo(a), vá ler a Peri Rossi, sua poesia é estrondosa. Garanto a você que arrependimento não haverá.

Laboratório nº 6: condensador de textos autorais
Parece nítido para mim que alternar entre tantos laboratórios de processamentos criatórios diferentes tem só uma finalidade: construir um laboratório próprio e particular para dar vida ao texto autoral. É pegando emprestados utensílios, mecanismos, cálculos e ferramentas desses outros laboratórios que vou, aos pouquinhos, construindo o meu. Quem sabe quando e se ele ficará pronto… Até lá, vou testando as formas e as fórmulas:

Do poema “Fazendo o que se ama”:

Remar, remar e remar:
subir pelos rios de roma
até achar o prumo, o rumo
de quem, em resumo,
vem tecer alguma soma.
E então rumar e rumar
até chegar a rima!
Fazer o que se ama
para que n’alguma rama
abrolhe a obra prima.

Desse (como gosto de chamar) circuito literário intitulado Fazia Poesia

A Fazia Poesia é fada (e é foda). É aqui que a mágica acontece, morô? Ter a oportunidade de ler e reler, viver e conviver, observar e absorver poetas, autores e escritores tão distintos é mais sem preço que um Mastercard.

Não é segredo pra ninguém, eu amo esse circuito literário. Com os outros circuitos, até mantenho certa distância, mas com a FP não é nem pessoal, é passional mesmo. E não só porque eu já fui editor ou porque ministrei oficinas de haicai ou porque sigo publicando poemas por aqui, mas porque estar nesse meio é assistir a uma eterna oficina literária. Quer ser uma escritora melhor, amiga? Quer melhorar seu texto, amigo? Vem pra Fazia Poesia. Aqui tem muita gente boa. Gente verde, gente madura. Gente ensinando, gente aprendendo. Gente cujo texto amo, gente cujo texto nem gosto tanto assim, mas vida, vida, assim, viva, é isso aí, todos com seus gostos diferentes e cada qual com seu cuscuz. É isso que deixa a coisa toda enriquecedora, sacou?

Por exemplo, quando rolou de vir a calhar a Fizemos, primeira antologia da FP, eu tive a oportunidade de escrever um poema junto da Ana Mendes. Foi um barato! Um barato caríssimo! Nossa, como guardo com valor e amor essa ocasião no seio da memória! Imagina, você, poder escrever um poema com uma autora que você admira. Foi isso que ocorreu:

Do poema “Envergadura do intangível”:

Uma ave é mais do que cores,
mais que plumas,
mais que gorjeios,
e por isso me inquieta.
seu voo, um verso escrito
sobre as nuvens
ela, a verdadeira
poeta.

Imagina você cruzar a bola e ver a mina do seu time cabecear e fazer o gol: foi isso! Ana Mendes, o nome da artilheira, repito. E como eu gostaria de repetir essa pelada e jogar versos com outros autores tão bons de técnica quanto: Alex Zani, Baga Defente, Ana C Moura, Felipe Moreno, Izabel da Rosa, hermes de sousa veras, RicardoC, Milena Martins Moura, Ísis Cunha, Cecilia Lobo, Lucas Pimentel, Guilherme Aniceto e mais uma galera cujos nomes eu não vou nem citar, porque é muita gente e o espaço é curto. Essa galera é quem faz a FP acontecer, e eu só agradeço a todos: obrigado por me acolherem e me deixarem fazer parte disso.

Das últimas considerações e um cadinho de marketing pessoal

Em geral, alguém procura ler alguma coisa sobre o processo de escrita de outro autor para melhorar o próprio processamento de escrever. Então, se o leitor procura, aqui, dicas, as dicas são essas: (1) leia, leia, leia, leia! Sempre que puder: leia, leia, leia, leia! Tem um tempinho? Leia, leia, leia, leia. De tudo quanto puder: leia! Essa dica é eterna e funciona; (2) Estude as figuras de linguagem à exaustão. Esse movimento melhorará a sua fala e a sua escrita, a sua dicção e o seu estilo, a sua prosa e a sua poesia em mil por cento. Mas não basta só estudar, tem de se debruçar, tem de dissecar; (3) Leia também a literatura feita por mulheres. Daqui para a posteridade, a literatura será mais delas do que nunca. Elas escrevem com uma sensibilidade e sagacidade outras que não as dos homens. A minha pessoa escritante favorita da vida inteira é, até o presente momento, uma mulher: Wislawa Szymborska.

Por fim, se o leitor quer saber alguns dos livros que li, recomendo a leitura do poema “Uma odisseia no título”. Se quer saber quais escritores andam me influenciando, recomendo a leitura do poema “Quem não tem pedra atira Petrarca”. Se o leitor quer saber o que sigo dançando, recomendo a leitura do poema “Trilha sonora para embriaguez”. Se o leitor anda apaixonado, recomendo a leitura dos poemas “O amor amorfo” e “Desculpas, mas não sei escrever poemas de amor”. E se, afinal, o leitor quiser olhar mais de perto um cadinho da minha obra, no meu Linktree e aqui, é possível encontrar o link para o meu livro Uma bomba embalada em um buquê, além de alguns contos, crônicas e artigos espalhados por esse planeta chamado web, cuja língua universal é o internetês. Ah! Lá no meu Insta procuro, sempre que possível, publicar conteúdos sobre escrita criatória também, me segue lá: @heberton.baptistela, me acessa aqui. Como eu disse: é na literatura a minha vida. No mais, é isso: obrigado pela sua leitura até aqui. Um beijo com lábios de colírio na ponta dos olhos.

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