Quem Fez Poesia? #43 — Conheça Juliana cajives

Confira as trajetórias e inspirações da poeta selecionada nesta temporada na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:
Uma das maiores graças de coordenar o Quem Fez é a possibilidade de me derramar em palavras sobre pessoas interessantes. É um barato, mas é também um desafio. Nesta edição, não só é diferente como é bem igual — e sempre insuficiente.

Cada tudo que a Juliana nos apresenta me chega como uma persona diferente dizendo olá, meio cabreira feito a chegada dela à FP, sim, mas, sobretudo, feito prisma de um mesmo caleidoscópio, feito um heterônimo de Pessoa. Existe uma acidez pulsante escorrendo por um “brasil inteiro, bocarreganhada”, um (auto)deboche sutil e quase tragicômico de (se) comentar entre parênteses que faz da autora potência, mesmo quando duvida de si mesma.

A dúvida, a ambiguidade, a dualidade e a contradição podem ser vias tortuosas do exercício de acolher todos os efeitos que os planetas, retrógrados ou não, produzem em nós — na astrologia às vezes, também, mas não só. São essa loucura de fazer-se em camadas dissonantes que, noites a frio, noites a fio (Scheherazade e Ariadne morreriam de inveja desse storytelling), nos contam histórias inteiras a partir dos fragmentos. No geral, elas nos deixam insones, mas de quando em quando nos brindam com canções de ninar.

Ao nos dizer suas impressões ao chegar à FP, Cajives nos mostra que talvez os pintores do Impressionismo estivessem equivocados: emoldurar de modo permanente apenas a primeira impressão captada da paisagem pode não ser a melhor opção, a mais precisa. Justamente por talvez já reconhecerem isso, eles costumavam passar horas no terraço, fotografando, em obras de pinceladas velozes, várias refrações das luzes solares ao longo do dia.

Talvez os pintores do Impressionismo estivessem certos.

Me parece que é isso que Juliana faz também, ao escrever o que escreve, aqui e ali: abraçar o volátil e a força das possibilidades, como num lembrete de que o horizonte também é surpresa e mistério. Que nossos olhos estejam sempre abertos e vivos para contemplá-lo, então.

Poeticamente,

Ana C Moura— Editora de Projetos da Fazia Poesia.

Mercúrio retrógrado

Ando meio injuriada para falar de escrita, para escrever, para falar, para a poesia, mas o exercício de estar nesta seção me fez investigar a minha escrita de um modo diferente, atravessado pelo péssimo humor em que estou. E, em retrospecto, talvez a escrita já tenha começado em mim dessa forma doída, penosa. Talvez seja por isso que o que se destacou do meu trabalho na FP tenha sido a aridez, a secura. Se há poetas que derivam sobre literatura falando de sexo, eu poderia ser considerada terrivelmente mal-lubrificada.

Minha mãe encontrou um tempo atrás, em meio às pouquíssimas lembranças que ela guarda da minha infância (sim, eu tô na terapia), um pedaço de papel de quando eu estava no início da alfabetização. Era um pedaço de folha de caderno rasgado ao meio, e a parte encontrada era a de baixo. Nele havia um desenho de uma gaiola à direita, com um pássaro muito próximo à porta, porém virado para fora. Também estavam desenhadas flores, uma árvore voando e um redemoinho. No centro, uma frase sobre deixar as pessoas livres que eu devo ter ouvido em algum lugar e também eu falando sobre ser triste. Pode ser essa a inauguração de uma poesia que ainda há em mim e da qual eu sinto que preciso me livrar. Escrevi alguns meses atrás:

“Tristeza é

como se o sovaco do coração
tivesse suando

mas suando só um pouquinho
sem nem feder muito
apenas o suor de pouca gota”

(publicado na FP, aqui)

Um tempo passado da alfabetização e das tristezas, entrei em livros com títulos horrivelmente escalafobéticos. A droga da obediência era um deles, e eu misturava essas leituras encontradas na seção infanto-juvenil da biblioteca da Escola Estadual Madre Belém, em Palmas, com tudo o que encontrava no quarto da minha irmã mais velha. Certa vez, eu andei pela rua com a coleção Primeiros passos, junto d’O Fausto na mochila em plena luz do dia. E pensando no peso das aleatoriedades nas minhas costas magrinhas, eu posso imaginar os motivos de tanta agressividade para falar de escrita. Sempre me dá dor nas costas.

Júpiter retrógrado

Mais ou menos nessa época, ganhei um prêmio por um poema que falava sobre pessoas numa festa e a total falta de atenção que era dada a mim. A categoria que me premiou foi a de adultos e meu poema foi lido pelo jurado convidado num recital que me fez evitar saraus até os vinte e três anos. Foi nesse princípio de adolescência que passei a escrever mais e mostrar para algumas pessoas, colocar em um blog quando conseguia vaga na lan house da prefeitura ou inventar ideias românticas de cápsulas embaixo de pés de pequi e de caju que nunca desenterrei (que fiquem por lá mesmo).

Em algum dia difícil do luto que é a adolescência, comecei a esconder tudo o que escrevia. Me esqueci de dizer que, desde o início disso tudo, eu fazia teatro. Quando comecei a esconder minhas crônicas e poemas, eu estava lendo peças de Nelson Rodrigues e tratando a mim mesma como uma fumante divorciada mal-maquiada. Passei alguns anos escrevendo pelas paredes do meu quarto e, quando escrevi muito na porta, minha mãe arrancou a porta do meu quarto (terapia intensifies), mas mesmo assim eu não tinha mais blog, nem caderno para mostrar para as pessoas.

Foi apenas perto dos dezoito anos, com a turminha (turmas dessas que a gente passa a achar ridículas quando lê Os detetives selvagens) da faculdade e um amigo que tocava violão, que eu comecei a escrever letras de músicas. Jean foi essa figura que muita gente que escreve tem ao lado, essa pessoa com quem você faz seu “círculo zútico”. Então voltei ao blog, criei um tanto bom de leitores e estufava bem o peito pra dizer que Palmério Dória e Marcelo Rubens Paiva já tinham me lido. Mais uma vez destruí os rastros disso para criar uma nova persona digital, e esse vai e vem se repetiu por algumas vezes, por insegurança, até eu encontrar alguma maturidade para escrever coisas mais próximas de mim.

Fazia Poesia era um verbo no futuro

Inclinada a engrossar meu processo de escrita e a encará-lo como um trabalho realmente complexo (poderia aqui fazer aquela piada chata sobre a origem da palavra trabalho e da minha relação de tortura com a escrita), busquei ferramentas que antes chegavam a mim com certa facilidade e eu as despejava. E o passo mais importante foi levar a sério a leitura da poesia publicada na internet, de poetas da minha contemporaneidade que não fossem necessariamente em publicações físicas ou nas livrarias.

Buscar justamente a poesia sendo feita foi o que me trouxe à Fazia Poesia como leitora, em primeiro lugar. Vasculhei por outras revistas e propostas literárias em efervescência na internet e esse mergulho me fez encontrar um lar para mim. Me inscrevi e entrei para o corpo interno da FP meio cabreira, com medo de encontrar apenas poetashomensbrancosbukowskianos. Porém, a comunidade por dentro é esse círculo literário bem ridículo e piegas ao qual nós precisamos pertencer para trocar, criticar, ler e ouvir.

Foi pela FP que conheci poetas que hoje são importantes e estão dentro do meu quadro de referências. Também foi pela periodicidade de publicações que dei forma ao meu processo, tornando-o menos despropositado e mais a cara da minha linguagem. Outro dia uma pessoa me abordou perguntando como consigo visibilidade (e tenho, é?) com o que escrevo e não houve outra resposta possível que não a entrada na Fazia Poesia.

Chego agora ao final desses dois anos vendo que transformei processos que antes eram caóticos e nos quais eu não acreditava em um trabalho intencionado para o que busco, com portas abertas para onde eu verdadeiramente desejo ir.

Farei poesia

Escrevo neste mercúrio retrógrado: escrevendo mal, não cumprindo prazos (Ísis, me perdoa, eu fui péssima com você), duvidando um pouco das coisas. Mas olho para um futuro sempre com a poesia, buscando estar próxima de poetas, buscando esse trabalho de ser ridícula. Pretendo continuar na FP, sustentando um certo caos que permanece. Faço parte também da revista da Mormaço Editorial e publico de vez em quando em outros espaços. Por enquanto é assim que desejo estar: deixando as coisas numa virtualidade que é quase a mesma coisa que sumir com tudo, que enterrar cápsulas. Mas, ao contrário do esconderijo e das cápsulas enterradas, o acidente de ser lida é o melhor risco a se correr.

Estou velha e ainda não tenho material suficiente para formar um livro. Essa me parece a ambição de muita gente, isso de formar uma grande obra redonda e coesa. Nos cursos de cinema, quase todo mundo entra querendo ser diretor com cadeira dobrável e chapeuzinho bege. Nas minhas muitas formações, eu acreditei que precisava ser destaque, completar algo, ser melhor do que alguém. Agora estou mais ou menos formada em muitas coisas, mais ou menos pronta para várias outras e com o cabelo meio desbotado, acho até que almocei quase todo o meu prato hoje. Admiro muito o César Aira, que nunca publicou livros grandes, a maioria é com uma ou duas novelas, três contos, coisa assim. Meu livro preferido da Verônica Stigger é feito de quatro obras curtas. Gosto do não muito e de continuar sendo bem pouco.

Mas, se você me encontrar sendo muito por aí, não estranhe também.

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