Quanto mais me questiono — cinco traduções de Kay Sage, por Luciana Moraes

Luciana Moraes
Fazia Poesia
Published in
4 min readJun 28, 2023

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Pintura: “My Room Has Two Doors” (1939) — Kay Sage

Katherine Linn Sage (1898–1963), nascida nos Estados Unidos, era geralmente conhecida como Kay Sage. Pintora surrealista e poeta, desenvolveu seus trabalhos entre 1936 e 1963. A artista teve reconhecimento em especial por suas pinturas, que envolviam natureza arquitetônica. Quando estivera em Paris, fora notada por André Breton e pelo pintor surrealista Yves Tanguy, com quem se casou, posteriormente, em Nova York.

Suas obras de arte contêm frases nos títulos, como se funcionassem como versos de sua obra poética: Eu vi três cidades (1944), Margem do silêncio (1942), A resposta é não (1958), Amanhã é nunca (1955), Os unicórnios desceram ao mar (1948). O título de uma pintura, “Meu quarto tem duas portas” (1939), não por acaso, é também o primeiro verso do poema “A janela”, desta obra em questão, The more I wonder (1957).

Poemas traduzidos

Uma observação

Quanto mais me questiono,
quanto mais eu vivo,
como pode tanta água
ficar numa peneira.

Seletiva

Já existem pessoas o bastante
que sabem o que é o quê,
para eu não me incomodar com aquelas
que nada disso sabem.

Contrassenso

Na noite
em que o juízo me veio
e no outro dia
eu cometi a loucura
que eu não mais
tive desejo algum
de cometer.

No espelho

Não olhe
para si mesmo
sempre
no mesmo
espelho.

A janela

Meu quarto tem duas portas
e uma janela.
Uma porta é vermelha e a outra é cinza.
Eu não consigo abrir a vermelha;
a porta cinza nem me interessa.
Não tendo chance,
talvez eu deva trancar ambas
e olhar pela janela.

Poemas originais

An observation

The more I wonder,
the longer I live,
how so much water
can stay in a sieve.

Selective

There are just enough people
who know what is what,
for me not to bother with those
who do not.

Paradox

In the night
wisdom came to me
and the next day
I committed the folly
which I no longer
had any desire
to commit.

In the mirror

Do not look
at yourself
always
in the same
mirror.

The window

My room has two doors
and one window.
One door is red and the other is gray.
I cannot open the red door;
the gray door does not interest me.
Having no choice,
I shall lock them both
and look out of the window.

Existe uma estética de esvaziamento em suas palavras. Como poeta, ela escreve de modo sucinto, entre uma esfera meditativa e uma voz cortante. Seus poemas são breves, porém densos; tal como seus quadros, parecem nos convidar a tocar o silêncio em finas arquiteturas, pelos prismas nebulosos ou encobertos nas paisagens. É possível notar ideias sobrepostas, guardando algum mistério e nos inserindo numa dimensão de vazio, seja nos seus versos, seja nas suas pinturas com cores sombrias. A ironia é seu fio condutor, leitmotiv da abstração e concreção artísticas.

Sobre o processo de tradução, não há como dizer que tenha sido simples, visto que sua escrita reduzida amplifica as possibilidades de sentidos, além de gerar mais inquietação para se adequar à sua sonoridade. Há muito a ser analisado nos escritos dela. Kay Sage é uma autora envolvida por um “halo circunspecto”, numa contemplação da vida que se apresenta sutilmente, mais por uma liberdade de criação cética do que por um deslumbramento mágico.

No primeiro poema selecionado, por exemplo, é visível a contradição presente entre as palavras “live” e “sieve”, imersas na água, literalmente. Ainda que em alguns poemas, como o citado, a autora dê preferência ao uso de rimas, minha escolha foi a dissonância. Os desafios mais recorrentes nos poemas se devem aos aspectos (peculiares) do ritmo e da sonoridade da autora. Em alguns momentos, optei pelo uso de sinônimos e, em outros casos, por reduções lexicais ou inversões sintáticas. Acredito que o aspecto gráfico da palavra (extensão vocabular) e o aspecto visual do poema se complementam. Seu livro, ao todo, contém 72 páginas, com camadas autobiográficas mescladas em outras tantas provocações semânticas e visuais inusitadas.

Referências
CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

CAMPOS, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. 21. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.

MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.

Luciana Moraes (1993) é poeta, tradutora e revisora, graduada em Letras (Unirio). Integra a equipe Fazia Poesia e o coletivo Escreviventes. Participou da Oficina Experimental de Poesia (RJ). Tem poemas em revistas como Mallarmargens, Capivara, Sucuru, Arara, Aboio, Grifo, Cassandra, Torquato, Letras Salvajes e Kuruma’tá. Está presente em diferentes projetos como “Versão brasileira: a voz da mulher” — coletânea digital de poesia (2023 — RJ) — e “Coletânea Off Flip de Literatura — Poesia” (2023). Tentei chegar aqui com estas mãos é seu livro de estreia.

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Poeta e tradutora freelancer. Autora de “Tentei chegar aqui com estas mãos”. Aprendiz da vida e do teatro. https://istoedicoes.com.br/produtos/tenteichegaraqui/