Psicanálise selvagem

Vitória Lima
3 min readMar 14, 2023
Fleabag, 2019.

Quem me conheceu nos últimos anos, sabe que eu tinha uma “relación bien… intensa” — como bem explicou minha amiga Helena, que fala portunhol — com a minha antiga analista. Cinco anos de análise, transferência estabelecida, uma pandemia, duas sobrinhas nascidas e uma por nascer. Toda semana (ou quase).

E aí acabou. E eu precisei buscar outro profissional, porque ninguém é de ferro (eu sou quase de açúcar, pra falar a verdade).

Primeira semana de janeiro. Após o recesso natalino com gosto de final de semestre misturado com TPM e sei lá mais o quê, cheguei ao consultório de uma nova psicóloga, cuja recomendação foi excelente: “mais de 50 anos de experiência profissional, ela é daquelas bravas, psicanalista mesmo!”. E eu, pensando que já estava habituada a uma analista “daquelas bravas”, me joguei aos lobos mais uma vez.

A senhora havia me dito para não chegar atrasada, então cheguei com antecedência em frente ao prédio e toquei o interfone pontualmente às 11h. Ao entrar na sala, notei que um “silêncio ruidoso” típico de consultórios de psicologia e psicanálise tomava conta do lugar. A senhora, que devia ter em torno de 70 anos, usava calça skinny em um tom claro de rosa, uma blusa estampada em tons de azul e sapatos com estampa de onça. Antes mesmo que se acomodasse em sua poltrona, começou a falar:

- Então, você deve ser a Vitória. Eu me chamo *piiiii*. Bom, hoje temos em torno de 50 minutos. Nos primeiros minutos, eu vou te pedir que me conte o motivo de ter buscado a terapia e, nos minutos finais, vou te dar um parecer e digo se a terapêutica é indicada. Pode começar.

Enquanto ela falava, um dos pontos de luz no teto começou a piscar, o que não foi o bastante para interromper seu texto (que parecia decorado e dito de forma robótica a todos que se consultavam ali).

- Aquela luz fica piscando?

- Começou agora.

Fui pega de surpresa por aquela psicanalista das bravas que falava roboticamente, mas segui e, advertida de que aquela primeira sessão poderia ser a última, decidi que falaria tudo o que pudesse ser “polêmico” ou determinante para o vínculo — afinal, se fosse para ter uma decepção, que fosse logo de cara, para que eu não precisasse voltar. Falei para mim mesma: “lá vamos nós de novo”; e comecei, imediatamente, a contar alguns episódios escabrosos da minha vida. Quase uma sinopse. Melhores momentos — só que, no caso, os piores.

Fui dizendo que, bom, atualmente, me considero uma pessoa bissexual e que ter entendido isso foi muito importante para mim. Anyway, por psicanalista das bravas, eu esperava uma mulher vestida em tons terrosos, com cara de Monalisa. Assim, uma velha de guerra, bixa muda, que faz o corte em dez minutos, joga seu dinheiro no chão, essas coisas. Mas ela fazia caras e bocas. Fazia, também, alguns comentários.

Chegou a hora do parecer.

- Bom, Vitória, nesses poucos minutos que pude te ouvir, deu pra notar que tu é… Assim, é um jargão até, mas tu faz jus ao teu nome, tu é uma Vitória mesmo! Tu é, assim… Uma ave rara! Pelas coisas que tu me contou, eu acho muito raro que tu esteja aqui hoje. Acho que tu até consegue se organizar, mas a tua confusão se mostra nisso, tu não consegue se decidir. Ora gosta de homens, ora de mulheres, não dá pra gente compreender bem se é uma homossexualidade estrutural ou uma preferência por mulheres por temor aos homens. Eu fico realmente receosa que tu, essa tua confusão, te leve a ser como a tua m…

- Ahnn, na verdade não… É… Podemos ficar por aqui?

- Ah, sim. A sessão custa trezentos reais.

--

--