Poemas destaques no portal Fazia Poesia | 2º trimestre de 2023

Confira os poemas que foram selecionados pela equipe editorial da Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Published in
8 min readJul 15, 2023

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Alô, poetas!

Eis mais uma edição deste apanhado trimestral dos poemas que foram publicados no portal. Este artigo é o resultado da leitura dos poemas dos meses de abril, maio e junho.

Nem é preciso dizer que essa, sim, é uma escolha muito difícil (aprendam, Estadão). Se a versão mensal já era um baita desafio, imaginem multiplicá-lo por três e pelos inúmeros poemas publicados todos os dias no portal!

Toda escolha é, sim, uma perda e uma renúncia, mas teimamos nessa doideira e nesse clichê que é enxergar o lado cheio do copo: nada disso existiria sem vocês que enviam textos, que publicam com a gente, que nos dão esse voto de confiança. A todos e cada um, fica nosso sincero agradecimento por fazer da Fazia Poesia o que ela é: comunidade, troca, poesia. Leminski certamente descansa em paz, jaz feliz.

Aos autores dos quinze poemas aqui selecionados (uma amostra singela mas poderosa dos muitos que publicamos), sintam-se sobretudo: porta-bandeiras de escola de samba; representantes e ecos de tantas outras vozes; partes integrantes de uma poesia contemporânea rica, diversa, viva, pulsante. Vocês são.

Com desejo de perpétuo devir e continuidade da poesia e sem mais delongas, faça-se luz na ribalta, holofote na passarela e tapete vermelho para o desfile, mas, principalmente, sensibilidade e coração aberto para conhecer mais dos poetas que escreveram os poemas aqui destacados.

Boa leitura!

matheus 19:22–24

de matheus dos anjos

socializar com o
que há de fantasma
no universo

continuar tentando
fazer de Seu silêncio
um 190 possível

quando lhe chega a vez
toma nota das grandes causas
arquiva
as menores

nunca o camelo
atravessou o fundo de uma agulha
(a mesma agulha
que só conhece
o ponto-cruz)

o paraíso dos homens ricos
sob Sua goela
como pintinhos aos cuidados
da asa da galinha

se a rocha falasse
teria a voz da cabeceira
de minha cama -
testemunha de meus pecados

frénésie

de Carol Ruiz

vesti-me de ana c.
risinho modernista
versinhos debochados
arranhando na garganta
meia profana
meia santa
ao som de patti smith
tento me justificar
: jesus died for somebody’s sins
but not mine
então jogo feitiços
disparo olhares
[nem tão romântica
nem tão vulgar]
num frénésie
encarando as ondas
de coney island
caminho descalça
calça jeans dobrada
camisa branca molhada
os bicos dos meus seios
duros como flechas
apontando o mistério
: eu sou o pecado
a teus pés

Lua de fogo

de marianna perna

1.
na face oculta
da lua
sigo talhando pedra
até virar fogo

2.
no silêncio absurdo
da lua
sigo pisando em gravetos
ocultos
até a floresta
ser toda puro sonho

3.
na topografia
impensável
da lua
sigo o impossível destino
de beijar o solo
até tudo arder e ser sol.

privação de propriedade

de Mylle Pampuch

sobre aqueles que se desdobram, aqueles
que especulam, aqueles
que são somente aqueles que deveriam ser, aqueles
que fazem de tudo sobre aqueles, aqueles
que restringem os direitos daqueles, aqueles
que se corrompem ou aqueles
que são corrompidos por aquilo, aqueles
que estimulam aquelas coisas, aqueles
que queríamos longe daquele lugar, aqueles
que foram treinados para matar (e matam)
aqueles

Entrelugar

de Ju Pavão

Entre sim

Fúria engolida
Talvez infinitos
Dúvidas cortadas
Café coado
Riso invisível
Estradas vespertinas

E não

aranhas

(ou uma história de abrir caminhos)
de Barbara Rufina

minhas costas queimam e eu olho para o teto,
bastante esotérica, investigando mistérios singelos
enquanto o refrão de Gilberto ecoa em minha mente

as aranhas fizeram uma casa na minha casa
e só observo o movimento leve de suas teias
sua matéria tão sensível
e ao mesmo tempo tão irrefutável
me hipnotiza

inevitáveis linhas que se sobrepõem ao que é cômodo,
tomando o seu lugar,
criando um cenário para poder existir,
coabitando pensamento e estrutura,
suspendendo julgamento, dor, culpa.

O tecido dança. Meu corpo dói.

Entendi que a vida se perde e se ganha nas pequenezas,
enquanto tomamos um café forte
para ficar bem acordados.

Acordamos que a vida é injusta e seguimos,
deixando que desfaçam nosso lar

O mundo quer que não sonhemos.
Que deixemos nossas mãos presas às ferramentas de trabalho,
construindo lares de papel
enquanto o tempo se desmancha no desgaste do corpo

Mas tudo bem.
Deixa estar, que achem tudo razoável.
As aranhas tecem seus mantos nas quinas.
Então, a nós, cabe fazer um buraco no teto,
desses que transgridem profundezas.

Uma mácula na estrutura tão grande
que seja capaz de fazer todo mundo escapar.

beija-flor

de Jonedsun

parar,
ainda que voando.
voar,
ainda que parado.
beijar
tua flor em vivo néctar.
florir
teu vivo beijo em pólen.

ilha infinita

de Flora Miguel

trepam com uma fúria nova
dia primeiro do ano por cima d’
um ebó
o céu gotas engraxadas
dançarinas pirofágicas o grande throwdini

o mais importante é a precisão:
eu miro para errar o alvo
a visão esfumaçada.

a ossatura humana se abre
como uma ave e suas penas
enroscadas em flores
[de água
projetam sombras nos caranguejos

da boca cai um signo escorre
sobre o verso originário
o verso é revelado
o verso é colocado n’
um altar de ossos

encanto sem nome
vidro e sangue
estalando

os primeiros capins amarelos
tocam um krautrock
(tímidos, um pouco pra
lá e
pra cá)
que uma garota e a amiga mais velha
escutam em silêncio

23:37

de Cristiano Durães

noite coisa pouca
frouxa luz de vento
um ar de rapto
ratos em silêncio
fatos inseguros
ㅤㅤㅤdormem
envelhecem na noite
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠa noite brisa
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠnoite soluço

a noite a cavalos
escuridão em trote
cavaleiros aos trastes
interpolam o tempo
estapeados pelo gosto
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠdas sombras
cavalgam rompendo o silêncio
com um ar de pinga, puta e potro.

um constante gemido em si menor
atado a outros fás e rés e tantos
ᅠᅠᅠᅠbemóis e notas não nomeadas
ditam o som dos freezers dos postes das bombas de água no chafariz o ar-condicionado nos cômodos fechados lacrados letreiros escuros quebrados alarmes interfones os carros embriagadosᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠ ᅠdistantes
tocando piseiros e outras batidas
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠ ᅠfelizes e solitárias

eis a noite
a noite muita
vento em corte

e então toda solidão
por um segundo transmutada em vozes
e cascos de cavalo
se massifica de novo
quieta
agora de outro jeito
agora outro silêncio

distâncias fundas
se revelam no eco da terceira marcha
engatada ao longe

um barulho de festa
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠdessas
alheias à solidão dos poetas
oculta os sussurros das transas nas janelas
os roncos em estafa
que escancaram a noite proletária
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠnoite camponesa

eu tenho tempo:
enquanto me arruíno em versos e vazios
a praça chove

Nela
geme um rio que avança
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠe se retrai
em tubos e torneiras.

As manhãs
se escondem nas paredes
guardadas nos canos
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠcomo dizia Gullar

Ainda dorme nessa noite
a mesma vontade
de ser diferente
outro jeito
outro tempo

outra hora
de se resolver

outra noite

mas
de novo anoiteço
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠacuado
ᅠᅠᅠᅠᅠimpregnado ao destinoᅠᅠ
ᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠᅠe sua insistente imposição

noite coisa pouca
noite infinitude
noite rude louca
noite

solitude

Fédon

de Ana Beatriz Soli

para E. Z.

me ouça, Eduardo
que os gritos das têmporas
são açúcares.
um drama doce
dizendo
amargos surdos
que me engolem

me ouça aqui
regurgitar entre a cicuta
e o ópio

de resto,
que outra coisa poderíamos fazer
até que o sol se ponha?

Forte, guerreira

de Gabriela Lagemann

Trabalhava o dia todo fazendo conta
pros outros
Passava no mercado pra comprar comida
pra gente
Reclamava pro nada que tava cansada
de tudo

No trabalho
só arrumava mais trabalho de graça
Em casa
ninguém ficava satisfeito com nada
Dentro dela
não havia descanso algum pra tristeza

Sem seguro e sem obrigação
pegou a bolsa
e foi embora

Deixou a geladeira
da casa vazia

Não quis mais ser forte,
guerreira

Ela
era a melhor funcionária
e foi substituída

Ela
era a melhor dona de casa
e a gente se virou

Ela
era a melhor mãe
mas hoje não é mais

A minha mãe

fevereiro

de Aluízio Ferreira Sueth

a embalagem de Marlboro
continua sendo bonita
apesar do arsênio
e tantos mil compostos cancerígenos
também encontrados nos venenos de ratos
tão
à vontade à mesa de centro
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤà luz baixa
do 22° andar a cidade insiste, em vão,
de abocanhar o céu com insanidade o céu
não tem ideias como o homem
ㅤㅤㅤ.
fevereiro, um azul ínvio
reluzia seus ótimos ombros
e meus olhos foram, desde então,
sardentos
contentamento de você
seu idioma estival, aí a vereda
impronunciável. porque refém, escrevi pássaros
na crista eriçada de tua brasa caudalosa
e ainda que eu tente não imitar o que sou
não te importam meu sol de cimento
e horas-extras na panela
ㅤㅤㅤ.
me conjuras sem nome
sem notícias
do país
ㅤㅤㅤ.
com tinta viva
me lava os cabelos
eu que vigio em teu seio salobro
porque me chamo água
Heracleion e deserto
eu que demorei a perceber
que quem procura
só pode achar o que já conhece
saúdo essa graça
de dizer nada
tão bonito
ㅤㅤㅤ.

ㅤㅤㅤquanto a embalagem de Marlboro

Cotidiano

de Ras Anders

Todos os dias,
quando bato o cartão de ponto
da fábrica,
dá uma saudade
do que nunca vivi.

De vez em quando,
sonho.

30 de outubro de 2022

de beatriz malcher

isa anda triste
quer visitar fernando
de noronha só pensa agora
em ostras ceviche casamento em
deixar o brasil com pressa em acampar

na frente de um quartel
isa já não cabe
nessa nossa madrugada

nós três vagando outra vez as ruas
como adolescentes as mesmas ruas
que tanto vagamos febris
nós três tontos de tanto beber
dessa alegria de estrela
vermelha

gustavo ri um riso novo
quer estar apaixonado
outra vez tudo é novo e os homens
pra gustavo são bonitos
vermelhos

tales ri um riso antigo
está apaixonado por david
sente que o amor é bonito vermelho
sente o futuro largo
na ponta dos pés

estou desperta febril
apaixonada pela cidade
cantarolo aquela canção e acho
que sim voltamos aos dezessete
depois de viver um século voltamos
e tudo pode ser
bonito e vermelho de novo

gustavo quer se apaixonar
tales quer o gosto doce do amanhã
e eu quero que essa alegria dure mais

mas pensar na alegria
assusta a alegria

eu sei, meus amigos, meu problema
é que sou sempre um pouco triste
ainda que traga nos olhos
ruas longas futuro de estrela
gustavo e tales vermelhos
e essa noite
que corre ampla

sou sempre vermelha
sempre um pouco triste
sempre alguma coisa me atravessa
a alegria, o peito:
lembro e perco isa
que já não cabe na nossa madrugada
que já não quero que caiba que
não sei se já coube um dia

me apoio com um braço no riso longo do gustavo
com o outro no sonho antigo do tales
e no meio dos dois tento sustentar as pernas o corpo a fome

lembro isa mas tento salvar a noite
ao menos essa noite que ainda resiste imensa

salvar uma coisa que ainda brilha e me deixa
de pé

até que venha estranha
como, sei, virá
a manhã

amanhã

hiperidrose

de Sarah Sanches

você diz que
não pode tocar
as folhas do livro
porque suas mãos suam
“elas molham tudo”, você diz
eu penso que
profundo isso
de haver marcas
da sua existência
em tudo que você toca
“ela esteve aqui” -
é o que diz
sua digital molhada
sobre a folha preta
mesmo depois de você
já ter saído pela porta
a mão dela
um dia esteve aqui
e tocou esta página
que dizia que
lésbicas existem
e que isso é bonito
eu penso que
porque suas mãos suam
você deve tocar
em tudo
vê, é bonito ser
uma lésbica que
registra -
mesmo sem querer -
a própria passagem

Agradecemos a leitura!

Poeticamente,

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