O rugido da selva e dos Silvas

flavia alvs
3 min readJun 12, 2021

Ensaio sobre a obra O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Verunschk

Povoar nosso imaginário sobre os povos originários do Brasil para lugares mais coerentes com a diversidade de 305 etnias e, de preferência, para longe de José de Alencar, não é tarefa fácil.

O Brasil, ainda hoje um tanto colonial, faz direitinho o papel de camuflar, distanciar e distorcer a cara do seu povo por trás de imagens de Márcios Garcias de escova e Jumas Marruás. Se no primeiro caso, a distorção é cômica de tão evidente, no segundo, com a moça sem modos, seria possível dizer o mesmo?

Para quem não assistiu à novela Pantanal, a personagem Juma, interpretada por Cristiane Oliveira, era a filha órfã de um ataque de grileiros em suas terras e, assim como sua mãe, transformava-se em onça. Uma indígena? Ela não era. Branca? Também não.

Juma era a mestiça, a selvagem, a bicho do mato. Uma mulher desenhada sob medida por Benedito Ruy Barbosa e posta naquele costumeiro “não lugar” de mil faces e pele morena que habita quase todas as esquinas do Brasil. Mas este texto não é sobre um sucesso da teledramaturgia, e sim sobre a obra O Som do Rugido da Onça, da escritora e historiadora, Micheliny Verunschk.

A trama poética/etnográfica da autora traz novamente a fábula da moça-fera. Porém, na obra, há dois tempos históricos distintos, o presente pré-pandemia e o tempo do Brasil Império.

De um lado, acompanhamos a angústia de uma moça à procura de suas raízes indígenas, de outro, viajamos na companhia de Iñe-e, a menina dos povos Miranha, levada para a corte europeia por dois etnógrafos alemães. Uma narrativa poderosa que, ao dispensar a historiografia eurocêntrica, traz à tona pistas da exuberância cultural dos povos originários do Brasil e regiões vizinhas. Ao meu ver, motivos mais do que bons para mergulhar na leitura da obra de Micheliny, ainda que, em minha opinião, a cereja do bolo esteja em outro lugar.

Em minha leitura, o pulo do gato encontra-se na passagem que a autora menciona o discernimento do historiador que, único espectador de um acontecimento, tem em suas mãos o poder de perpetuar a história à sua maneira.

“O papel suporta tudo, Martius bem sabe. (…) Letras são animais que, depois de domesticados, apenas obedecem, ele acredita.”

Uma convicção que parece incomodar Verunschk, ainda que a instrumente para fazer o mesmo.

Em O Som do Rugido da Onça, a autora se utiliza da ficção para dar justiça para a menina indígena predada da sua terra, depois de falecida no extrangeiro. Como se a história colonial oficial, contaminada pelas narrativas dos povos originários, fosse capaz de remendar as feridas feitas pelo homem branco sobre os povos da floresta.

Na fábula de Verunschk, a indígena Miranha é trazida de volta em espírito para junto dos seus e reencontra sua mãe e sua aldeia, porém reencarnada na pele de uma fera. Uma pequena Miranha, enfim capaz de fazer frente ao homem branco na proteção de milhares de meninas e mulheres que um dia, aquela mesma onça foi.

Metamorfose de menina-fera que traz a força das palavras capazes de acolher a história das selvas e dos Silvas. Uma leitura de descobrimento, reencontro, cura e conciliação.

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