O equilíbrio é uma rasteira

danilo crespo
Fazia Poesia
Published in
7 min readApr 29, 2024

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“le combat singulier”, colagem de Márcia Menezes (2024)

A poesia é breve. Isso é inerente ao próprio formato. Enquanto um romance terá palavras em parágrafos ordenados que criam imagens e ideias para contar uma história, o poema é uma pilha de frases. Isto é, precisa-se de mais espaço na página para, em teoria, passar o mesmo número de informações. Um detalhe muda tudo. Nem precisamos contar histórias, nem precisamos de ordem. Essa página cheia de lacunas contém liberdade para quem escreve e para quem lê. Portanto, você não usa as mesmas formas ou palavras que usaria num romance. É necessário algo que justifique o espaço, se enraíze com as sementes jogadas ali e cresça. Porrada. Não temos doze rounds como o romance, temos que ir pro nocaute.

Aqui começa o paradoxo: quando penso sobre essa metáfora, algo não parece certo. O peso que naturalmente atribuo à força de um verso é diferente do peso de um corpo robusto de um romance ou outro formato em prosa. Nesse quesito é que a literatura vai mostrando suas complexidades que a tornam arte inesgotável. Um livro de ficção de muitas páginas muitas vezes vai trazer poesia em momentos para que haja beleza ou qualquer intensidade naquilo que se conta. E funciona. Por exemplo, Gabriel Garcia Márquez é um peso-pesado cujos golpes são certeiros e potentes.

André Piñero escreve poesia. Tem como destaque pra mim em seu livro justamente algo que deve ser categorizado como prosa poética. É um texto denso, uma parede de palavras que não reproduzirei aqui inteiramente aqui. Muitos autores implicam com a prosa poética porque ela tenta reproduzir algo que necessita de espaço para crescer, mas sem utilizá-lo. Às vezes, pode dar sensação de claustrofobia. É algo que sinto no poema “A natureza dos múltiplos de três”, uma lama destilando um cansaço acerca de egoísmo, aparências e relacionamentos. No final, como um pugilista das antigas, depois que seu adversário está já sem ar, ele o empurra para trás com um soco da mão não dominante e em seguida, com versos que sugam todo o oxigênio que repentinamente brota ao fim da página, dá uma verdadeira porrada para levar o leitor a nocaute.

[…] pagar a conta do aluguel e parecer heterossexual não são grandes problemas quando só precisamos ficar quietinhos em um canto tranquilo esperando morrer, na sala dos livros e dos dicionários manchados na parede meio brasa, meio piche, na medida em que a tua pele contrariou toda a semântica da palavra “superficial”, porque quando uma pessoa está dentro, ela nunca está fora, ainda que transborde. falando em dilatação e os cálculos teóricos do comprometimento, nós somos físicos e esses dedos
essa boca
essas palavras sempre serão do mesmo idioma
e podem nunca saber

de nenhum dia a mais de fome pra eu te devorar
ou do nascimento da primeira árvore que se recusou a queimar
porque ela mesma
era o fogo

Copo Americano (2021), de André Piñero.

O poema aflora na contradição, o pesado e o leve aqui não se excluem. Antes eu disse que se deve preencher o espaço com algo que cresça, agora quero te dizer que as lacunas devem permanecer. Aquilo que nos pega é multifacetado: deve ser forte e pesado, preencher de raízes e manter o campo livre pra ir na direção do leitor sem depender tanto assim de onde este se encontra. A poesia, bem como o cinema (e o mesmo vale pra outras formas de arte), depende da criação de quem lê. O trabalho é conjunto entre leitor e escritor, um complementa ao outro.

Então, seguindo essa fita de moebius, venho aqui te dizer que a poesia também é leve. Haja delicadeza para, em espaços entre palavras, criar ainda mais espaço, um universo próprio.

E então você chegou
como quem deixa cair
sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
um pouco de café uma gota de mel
cinzas de cigarro
preenchendo
por descuido um qualquer lugar até então
deserto

Livro das Semelhanças (2015), de Ana Martins Marques.

Vivemos numa era diferente da de Carlos Drummond de Andrade, ele nunca foi bombardeado por informações. Todos os dias notícias, sugestões, opiniões sendo gritadas. Acordar e olhar o relógio no celular e esquecer o sonho, a vida imaterial, tudo evapora num segundo, e essa quantidade amorfa que se replica e ataca cada pessoa não agrega nada. Só cansa. Por isso mesmo, imagino a necessidade de violência, essa metáfora é a que me ocorre, a da porrada. Não é suficiente. O poema tem que ser muito mais que um soco para tirar o leitor desse lugar inerte e que nos aprisiona na rotina: a leveza.

Ana Martins Marques é muito boa nisso. Suas palavras chegam mansas, sem causar alarde, e te envolvem de uma forma tal, que é difícil sair incólume. De repente, está criado um novo mundo, onde nossos sentimentos estão juntos com os dela.

Você fez questão
de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira

Livro das Semelhanças (2015), de Ana Martins Marques.

A palavra agressiva tem seu lugar e momento. É difícil bater de frente com a austeridade dessa sociedade apenas com as nossas palavras. É por isso que o poema exige esse outro lado delicado, o qual envolve e nos leva para um lugar diferente de onde estávamos antes.

Existem, sim, poemas que têm pouca leveza e muito peso. Isso é muito comum na poesia falada, de slam. Eu particularmente acho que o meio complementa o formato, dando a ele o que a palavra somente escrita não alcança. Essa escrita de contusão nada suave tende a falar de forma imediata, o que a torna muito eficaz na voz e dificulta sua longevidade no papel.

A leveza depende de uma certa simplicidade, encontrar essa qualidade escorregadia da palavra. Não é fácil atingir esse equilíbrio. Escrever e reescrever, encher o poema de palavras e jogá-lo na parede feito macarrão para ver o que gruda e o que cai. Acontece de escrevermos aquele poema perfeito de momento; ainda assim, em geral essa inspiração divina não supre a vida do escritor. Tanto o que é leve quanto o que é pesado precisam ser encontrados, haja desprendimento para soltar alguns versos que não mais pertencem ali — mas, como são nossas criações, é difícil.

Não se engane com o peso existente nesses poemas da Ana Martins Marques. Não são leveza pura. A materialidade que traz as cartografias da autora para o plano real compõe o outro lado do suave. Por exemplo, “Você fez questão/de dobrar o mapa” ocorre a partir de um movimento físico que faz cidades tão distantes criarem fronteira. Dobra-se o mapa. Nele, existem duas cidades muitos distantes. Quando a fronteira começa a existir para o leitor, o contexto já está todo à sua volta, e você é derrubado. Aqui não é um soco, é uma rasteira, daquelas que nos deixa olhando para o céu, pensando na vida. Equilíbrio.

No poema anterior (no livro e na menção deste texto), o verso “como quem deixa cair/sobre um mapa” é simples e envolvente para ganhar força com a materialidade que pinta o poema de sentidos e memórias: mesa, café, mel, cinzas de cigarro. Aqui, o deserto é povoado, por assim dizer, por esses elementos cotidianos que ganham uma nova proporção, muito maior. Aí está sua força, que se inicia com um movimento — “E então você chegou” — , parte para uma abstração e materializa o ordinário a fim de transformá-lo em extraordinário.

Se não prestamos atenção, é possível que escrevamos só da forma que não leva em conta o peso dos versos. Uma parte do processo poético é verter poemas a partir de pensamentos. No dia a dia, eu tenho muitas dúvidas, então escrevo “acho”, “quero”, “talvez”. Ao passar da cabeça para o papel, é fácil manter essas muletas. A porrada, ela nasce do que é direto: em vez de falar daquilo que dói muito, mostre o ataque e os hematomas. Ajuda deixar a insegurança e a incerteza de lado na hora de escrever. Busquei no meu antigo blog e encontrei os seguintes versos, escritos há mais de 10 anos: “[…] você nunca me disse aonde queria chegar./Talvez, lugar nenhum seja exatamente o que você precisa”. Eu não sabia. Agora, o poeta que sabe (e só depende de você) afirma “Lugar nenhum é exatamente o que você precisa”, e isso faz toda a diferença.

Pronto. Essas nomenclaturas são todas minhas. Outros autores certamente têm termos distintos para se referir a esses elementos que dão contornos diferenciados a um poema. O importante é que a partir dessa minha leitura eu sou capaz de procurar trabalhar o que escrevo em busca do que chamo aqui de equilíbrio: envolver o leitor e atingi-lo de forma certeira, como faz Ana Martins Marques.

Estudar, praticar e reescrever são processos essenciais. Miles Davis encorajava os músicos de suas bandas a não ensaiarem de antemão para improvisarem algo novo no momento do fervor em que o músico se torna um com seu instrumento. O que é fácil esquecer é que, para alguém chegar a tocar com ele, havia muito caminho, muito que aprender, essas coisas demandam tempo e experiências diversas para se consolidarem. A ideia de perceber as forças do poema, dividi-lo em partes — o que é leve, o que é pesado — , ajuda a trabalhar nele com um pouco mais de clareza. O mesmo vale para o xadrez, por exemplo. É muito difícil, mas, ao estudá-lo, aprendem-se posições, e aos poucos torna-se mais fácil, até intuitivo, encontrar a melhor jogada.

Meu filho é pintor. Todos os professores da escola dizem a ele que é um gênio. Eu falo para ele pintar uma maçã que se pareça com uma maçã antes que ele pinte uma que não parece. Vá aonde pode ir, mas comece de algum lugar que reconhece. Fazer do simples complicado é lugar-comum; fazer do complicado simples, incrivelmente simples, isso é criatividade.

Charles Mingus, Mainliner (jul. 1977).

Fica aqui minha sugestão: não pense tanto assim antes de escrever. Escreva! Pense depois. Então, reescreva e reescreva de novo… até surpreender a si mesmo e, dessa forma, ao leitor.

Referências:

MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MINGUS, Charles. Revista Mainliner. United Airlines, edição de julho de 1977.

PIÑERO, André. Copo americano. Cotia: Editora Urutau, 2021.

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poeta, dramaturgo e proletário no rj. “zen-budistas e furiosos” (2021, urutau). linktr.ee/dscrespo