O Brasil fora de casa

flavia alvs
3 min readMay 26, 2020

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Essa semana precisei resolver algo urgente em uma agência bancária e aproveitei o feriado, que supostamente deixaria as ruas mais vazias, para fazer a função, já que os bancos permaneceram abertos. Meu parceiro fazia uma posição de pilates com dois sacos de tapioca em cada mão, quando me viu passar de tênis pela sala. Perguntou se eu não gostaria de uma carona de carro e eu recusei a oferta, pensando na compensação lúdica de caminhar numa manhã bonita de sol, apesar da constante preocupação de estar fazendo algum tipo de besteira, já que me encontro no epicentro da epidemia de COVID-19 no Brasil.

No segundo quarteirão, a paisagem do bar da esquina cheio de tiozão tomando café com leite sem máscara me fez retroceder de volta para a oferta da carona. Mas ele já tinha saído de casa.

Não havia jeito, era tomar distância do pessoal e ir logo para voltar logo.

Àquela hora da manhã, via-se taxistas encostados em seus carros, padarias e bares cheirando pão com manteiga e uma meia dúzia de clientes fiéis bebericando o café da manhã na frente das barricadas, como se fossem um novo balcão nas portas dos estabelecimentos. Entregadores e motoboys também já zanzavam de lá para cá entregando todo tipo de necessidade doméstica

Sem mencionar a população de cerca de 24 mil pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo que, obviamente, não se enquadram na hashtag ficaemcasa.

Na praça do Patriarca, uma fila imensa se formou desde a kombi que distribuía quentinhas até sabe-se lá onde, era uma fila tão densa e comprida, que não havia meios nem de contornar o povo, nem de passar por ele. Ao lado de onde estavam, um caminhão pipa jogava água sanitária na calçada, passando a impressão que a simples presença daquela gente faminta deveria ser imediatamente desinfectada da via pública. Junto a isso, como se coubesse, um grupo de enfermeiras abriam uma faixa de protesto no sinaleiro fechado. Procurei ler a faixa, não consegui.

Desisti um pouco contrariada e tomei o caminho de casa, lembrando-se da matemática perdigotos infectados versus tempo de exposição.

A cidade que eu observei na minha proposta de “caminhada lúdica” não é o mundo que se apresenta em minhas redes sociais, onde todos desaprovam o presidente, testam receitas e tiram algum tipo de lição espirituosa da quarentena. Não que este não seja o meu universo, ele é. Mas não só.

O caso é que ter andado junto a esse outro mundo, reconhecer que eu o componho, mas não o entendo, que dou de menos e posto demais são constatações doloridas para essa parte de mim que luta para ser uma pessoa melhor.

Tá cheio de gente na rua e isso é um perigo enorme para todos. Por outro lado, também está cheio de gente obrigada a trabalhar e desobrigada, sim, de pensar que pode morrer no caminho do trabalho. Se eu vejo isso? Vejo. Mas nunca sem um esforço para sair da minha condição de privilegiada.

Sim, falta educação básica para o nosso povo, sim falta uma informação confiável e de qualidade para informá-lo como se deve e sim, somos cruéis. Mas não somos “só” isso. Somos TUDO isso. Com todas as nossas particularidades, desafios e diferenças.

Resumo da ópera:

A cidade que eu observei na minha proposta de “caminhada lúdica” não é o mundo que se apresenta em minhas redes sociais, onde todos desaprovam o presidente, testam receitas e tiram algum tipo de lição espirituosa da quarentena.

Não que este não seja o meu universo, ele é. Mas não é somente isso.

Talvez, o grande risco desse momento de reclusão seja o esquecimento do mundo por inteiro. É preciso muito cuidado com os algoritmos. Entre cachorros, pães, filtros e selfies, eles quase que cegam a gente.

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