Música e recorte social: é errado usar sample?

@ellasoueu
4 min readJan 24, 2021

Usar um sample é errado?

Me fizeram essa pergunta no tiktok um tempo atrás. Pra mim, a resposta parecia óbvia: não. Não é errado. É genuíno. É criativo. É acessível. Mas busquei a melhor e mais didática forma de responder e os insights que eu tive pra pensar nessa resposta culminaram nas reflexões que trago por meio desse texto.

O Sample é uma das tendências mais atemporais da indústria musical e é impossível falar de sample sem falar de recorte social. Foi entre os anos 60 e 70 que surgiram as primeiras evidências de uso de samples em músicas, utilizadas por artistas como Pierre Schaeffer e Pierre Henry, James Tenney e até mesmo os Beatles, que arriscavam nos samples através da captação e manipulação de sons. Mas o verdadeiro boom do recurso foi criado pelos DJ's no gênero rap/hip-hop, com a manipulação dos vinis nas festas. É possível dizer que a história do sampling se mistura com a história do nascimento do que hoje é o gênero mais ouvido nos estados unidos: o Hip Hop — mas que, importante dizer, segue sendo um dos gêneros mais marginalizados mundo afora.

Não tardou para as discussões sobre plágio começarem, pois com a popularidade do recurso nos anos 80 e com a sua normalização também surgiram os debate acerca da sua legalidade. Quando o assunto são samples, a linha entre inspiração e plágio é tênue e embaçada porque envolve, até hoje, gravações já existentes que servem de base, inspiração ou repertório para os compositores, beatmakers, dj's e produtores musicais e a forma como cada um utiliza isso depende da criatividade, bom senso e bom caráter de cada um.

Logo surgiram discussões sobre quantos segundos podem ser utilizados pra que a linha entre plágio e inspiração seja clara, porque no sampling vale tudo, desde usar um conjunto de drums, 3 segundos de voz, utilizar alguns acordes, até o uso de mais segundos da música que depois é repetida ao longo de um beat ou instrumental. Bom, mas hoje eu não to aqui pra falar sobre os aspectos técnicos e burocráticos que categorizam uma música como plágio ou como sample.

De uma forma geral e especialmente no recorte social do rap e do hip-hop o uso de samples nos obriga a repensar nas leis de direitos autorais considerando que a reprodução digital amplia os entendimentos existentes sobre “o que é uma cópia?” e nos faz repensar o processo de composição, arranjo e produção de uma música.

Um caso famoso e bem prático pra pensar sobre isso é no encontro épico de baixo e bateria de Under Pressure — Queen e David Bowie em Ice Ice Baby do Vanila Ice, que hoje em dia inclusive tem os direitos sobre a música, vendidos pelo próprio guitarrista do Queen, Brian May. Mas foi antes disso, nos breakbeats oitentistas de nomes como James Brown que inspiraram os B-Boys e que foram imprescindíveis para a consagração de Fight The Power do Public Enemy que utiliza nada mais nada menos do que 21 samples em uma só música ou Fuck Tha Police do N.W.A que utiliza 10.

O sample, quando bem aproveitado, como nesses casos que citei, é uma forma de reciclar a música e, mais importante que isso, uma forma de tornar ela acessível. Acessível pra quem àqueles tempos e hoje em dia não tinha e não tem acesso a multi instrumentos, aulas e conservatórios mas tem criatividade e uma história pra contar — e, importante dizer, uma história dentro do seu recorte social e das suas visões de mundo, visões essas que eram invisibilizadas antes de serem contadas por meio de obras culturais, tais quais músicas, filmes, peças e livros. E contadas pelos próprios protagonistas dessas histórias. (Claro que ao falar disso entramos em outro campo que é a apropriação cultural e representatividade, mas isso é papo pra um outro texto).

Essa é uma das propriedades mais lindas na música, pra mim: o story telling que invariavelmente vai ser diferente de compositor pra compositor, de produtor pra produtor e de música pra música. Claro que os direitos autorais tem de ser protegidos. E, no fim, essa nem é a questão aqui, é em qual o potencial criativo de quem utiliza o sample de transformar uma música que já existe em algo completamente novo.

E, modéstia a parte, a gente faz isso de forma incomparável no Brasil. A criatividade do brasileiro possibilitou que a gente pudesse ouvir a flauta de Sebastian Bach em Bum Bum Tan Tan do Mc Fioti. O Every Lesson Learned da Erykah Badu nas músicas do Froid. O instrumental de Daytripper dos Beatles em Dentro do carro do Mc Kevin O Chris. O Sujeito de sorte do Belchior em AmarElo do Emicida. E a lista é imensa.

Que bom que os samples existem. E que bom que a música é reciclável e que eu pude aprender sobre realidades diferentes da minha por meio dela. Isso só reforça o potencial educativo da cultura, tanto pra quem consome quanto pra quem produz ela.

Meu nome é Mariana Bavaresco mas pode me chamar de Ella e sempre que perguntarem @ellasoueu!

--

--

@ellasoueu

Jornalista & Compositora. Canto e conto histórias. Journalist. Digital Nomading around the globe. Telling stories since I can talk!