Memórias nubladas

Regiane Folter
Fazia Poesia
Published in
3 min readApr 24, 2024

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O dia em que papai morreu estava nublado
Nuvens cinzentas enchiam o céu
Tapavam o sol
Paredes rígidas que não nos deixavam ver o horizonte
Me lembro de me perguntar se abririam aquela muralha de nuvens
Pra papai poder entrar no céu.

Me lembro de pensar isso e logo rir
Que pensamento mais tonto!
Até porque eu nem sabia se acreditava no céu
Até hoje não sei.

O dia nublado ameaçava chover, mas não chovia
De qualquer forma, não faltava água lá na casa da vó
Onde a família se juntou para lamentar
Pra deixar cair as lágrimas
E buscar conforto nos braços uns dos outros
Para rezar e pedir por ele, pedir por nós
Mamãe, irmão e eu
De repente éramos víuva e meio órfãos.

Lembro da mão de mamãe em meu ombro
De passar o braço pelo do meu irmão e não soltar
De olhar para ambos e não ver uma víuva e um meio órfão
E sim duas pedras preciosas, dois tesouros magníficos
Lembro de desejar não perdê-los jamais.

Muitos anos se passaram
Quase 20, se não estou enganada
Às vezes parecem 100,
Às vezes parecem horas.
Vivi muitos dias mais
Às vezes nublados como aquele
Às vezes brilhantes e azuis.
Vivi muitas coisas mais
Boas e ruins
Embora poucas tão ruins como aquele dia.

O relógio não tem piedade de quem está de luto
Ou talvez tenha tanta piedade
Que gira o mais rápido que pode
Esperando que, ao por distância entre nós
E aquilo que perdemos,
Nos ajude a superar a dor.

Não sei, pode ser.

É verdade que o tempo que passa
Traz com ele belezas e tristezas
Alegrias e horrores
Novidades enfim
Novos leões para enfrentar
Novas vitórias para celebrar
Emoções e momentos que ocupam nossas mãos
E corações
E mentes.

O lugar para as memórias vai se tornando menor
O cérebro começa a priorizar.

Porém

De algumas coisas não me esquecerei jamais
Não me esquecerei do nosso olhar infantil e assustado
Quando mamãe abriu a porta da sala
Depois de passar a noite no hospital
E disse “papai descansou”.
Não me esquecerei da sucessão de abraços apertados
Das vozes chorosas
E do afago suave da minha madrinha
Que me deixou dormir na sua cama
E passou os dedos pelos meus cabelos
(tão suaves como o bater de asas de uma borboleta)
Até eu dormir.
Não me esquecerei dos dias seguintes
Incertos, dolorosos
Da sensação estranhíssima de que a qualquer momento
Ele abriria a porta
Dizendo meu nome daquele jeito que só ele tinha
Pronunciando a R como um garfo arranhando um prato
Arrepiava, mas era bom.
E de logo lembrar de que
Não.
Ele não abriria a porta.

Lembrar é bom e ruim
Necessário, às vezes
Às vezes não.
Às vezes simplesmente inevitável
Como quando vejo um dia nublado
E me pergunto, saudosa e risonha,
Se naquele dia
Papai conseguirá nos ver
Da sua janela lá no céu.

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