Um combustível chamado falta

Vitória Lima
Revista Subjetiva
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2 min readJun 11, 2020

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Reprodução: Tumblr

Já faz umas cinco horas que não abro a boca. Nem para falar, nem para comer. Hoje tomei café e quando me dei conta já havia passado do meio-dia. A hora foi passando: duas, três, quatro da tarde. Nada de fome, nada de almoço; tomei outro café.

Tem dias que apenas paro de comer, alguns diriam que é para existir menos. O que eu diria? Não sei. Mas me assusto com essa capacidade, é como se eu ativasse o modo putrefação ainda em vida e me pusesse a definhar.

E vou definhando. Posso sentir os nervos atrofiando, os órgãos padecendo, o gosto do nada — que é pior que o gosto de bile —, a apatia que é como sentir um tipo dilacerante de vazio e sentir nada (sentir nada por incapacidade de lidar com o tudo?). Por vezes, tenho certeza de que estou morrendo. Se eu fechasse os olhos, poderia atestar o fio por onde ando: um fio de linha, bem fino, rente ao abismo. Tenho muito medo do abismo, porque já estive bem perto, apenas a alguns centímetros do chão e não lembro de como saí. Pode ter sido mágica, pode ter sido sorte, mas, se um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, um mesmo corpo não se salva tantas vezes da morte.

Não fecho os olhos. Fico atenta aos sinais, alerta, viva! Sei que estou viva porque respiro, apesar de tudo ainda respiro muito acelerada assim muito ar por segundo entrapelonarizpelosporospela boca seca. Falta o ar. Eu sinto a falta.

Céus, ela veio! O nada é preenchido pela falta, falta de ar, falta de prosa, falta de sentido, mas não de sensações. Eu sinto a minha boca seca e agora o desejo de aguá-la. Sinto sede, mas não de água; sinto sede de vida.

E fecho os olhos para morrer.

Corto com os dentes o fio que me salva da morte.

Caio mais rápido do que posso notar. Tem uma agulha. E nem por mágica, nem por sorte, ainda posso respirar. Os joelhos, a testa, os cotovelos e a palma das mãos esfolados, mal enxergo, mas de fio em fio construo uma corda, uma colcha, um desejo.

Me dê licença, preciso buscá-lo. Mas antes vou abrir a boca.

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