isso sou eu
PRIMEIRO ATO
…
isso sou eu
…
uma camada de ar
insistente
que garante que o toque
não alcance a pele
…
uma lágrima imprudente
que faz em mim
sua nascente
e me lembra
que eu prefiro morrer
do que chorar perto de certas pessoas
…
um aperto no peito recorrente
que de tempos em tempos
traz a salgada lembrança:
eu estou sozinha
…
um formigamento na face
na noite de angustia
a ansiedade acaricia meu rosto
…
um tremor repentino
que toma todo o corpo
fazendo soar frio
o medo incontrolável
e irracional
o desespero da perda de controle
…
um nó na garganta
que tranca minha voz
mas não cala a minha mente
um lembrete necessário
quando o oxigênio faz queimar:
inspirar
e
expirar
…
uma queimação no estômago
que irradia pelo corpo
a necessidade de
um pouco de paz
se traduz
em uma guerra
envolvendo todas as coisas
que eu não consigo digerir
…
a incerteza em ser o que sou
num reconhecer-se
sem saber se descrever
num resistir
sem saber como existir
…
momentos de fala nervosa e ininterrupta
intercalados com longos momentos de silencio
em uma eterna procura de palavras que expressem
o que eu ainda não sei o que é
…
um cansaço persistente
que ocupa corpo e mente
e me impede de chegar
em qualquer lugar
fico ausente, mesmo presente:
em falta comigo mesma
…
dores, temores, tremores
impulsividades e covardias
fobias, medos bobos
apatias e sensibilidades
e no meio de tudo isso
um eu: que hora é plural
hora é singular
e que em todas as horas é:
um eu preterido
pelo próprio eu;
um eu imperfeito
não muito diferente
de todos os outros “eu”
…
eu?
…
SEGUNDO ATO
…
isso sou eu?
…
a descrição de sintomas
mentais e físicos
que surgem como resposta
a todas as dores que eu
tento manter internas?
esperando tratamentos alopáticos
para o que só pode ser remediado
através do enfrentamento?
…
a covardia de quem
ignora todos os problemas
não por acreditar que assim
talvez seja mais fácil
mas por não acreditar
na própria força?
…
que força?
…
construir uma forca mental
e pendurar-se pelo pescoço
e forçar-se a engolir
sequencias de acontecimentos
amargos demais?
e perceber a pequenez diante de tudo
e tudo parecer demais?
…
gastrites?
crises ansiosas?
o que mais?
…
faltou mencionar
o guardar de rancor
que chega a ser crônico
…
faltou mencionar
o temperamento explosivo
…
faltou dizer
das dificuldades de amar
…
que se os sintomas
fazem parte
disso que sou
faço parte também
das causas
faço parte também
das reações
…
que se sou os ácidos
produzidos em excesso
sou eu mesma
um tanto de excesso
que o meu eu não consegue
exprimir: que não consegue expelir
que não consegue digerir e deixar seguir
…
que se sou tremores ansiosos
que abalam meu corpo e mente
sou eu mesma
deslocada do presente
tentando enxergar um futuro
quando tudo que eu vejo
parece se desmontar
num processo que me atinge
com tanta força
que me força a perceber
que o que se desmonta
sou eu mesma
…
que se sou tomada por incertezas
que me desconjuntam de mim
sou eu mesma
que questiono a todo momento
sobre o que eu sou
sobre o meu lugar no mundo
sobre o próprio mundo
e tudo parece grande demais
perto das pequenas verdades
que eu consigo extrair
desses embates
que sempre me deixam derrotada
que sempre me fazem ver
cada vez mais pequena
…
que se sou eu
que poderia ser além disso?
…
que se sou isso
seria “isso” suficiente?
…
se isso sou eu
sou eu suficiente?
…
suficientemente:
eu?
…
TERCEIRO ATO
…
falo de um eu
que eu nem sei
se conheço
…
falo de um eu
que eu tento
a todo momento
me convencer
de que estou
descobrindo
…
e a cada momento
que eu penso
estar mais perto
e a cada momento
que eu penso
estar conseguindo
enxergar
me percebo mais desfocada
…
reconheço
as redomas em minha volta
são camadas
sobre camadas
e quando eu rompo uma delas
me percebo
inevitavelmente
ainda presa
ainda distante
de eu mesma
ainda insuficientemente
eu
…
minha pele
teme que
qualquer toque
me desintegre
…
argumento a todo momento
internamente, insistentemente:
as camadas são necessárias
que todas essas camadas
são proteção
e o preço
que eu pago
para me sentir protegida
é me sentir:
intocada
…
abraçar
e os braços
parecerem
sempre curtos demais
beijar
e o desejo
parecer
sempre longe demais
respirar
e o ar
parecer
sempre pesado demais
tocar
e o tato
parecer
sempre desconectado demais
…
desconexa
de um eu
que se corrompe
que mostra uma imagem
que é diferente
do que eu sou
que mostra uma imagem
que é diferente
do que eu tento ser
…
um eu
falho
…
em uma busca
continua
que me leva
para a constatação
talvez
de que eu seja isso mesmo
…
falha
…
FATAL ERROR
…
tão defeituosa
quanto as imagens
que eu gosto de editar
que são propositalmente
expostas, corrompidas
imagens com erros
que eu cometi:
por querer
…
e talvez isso seja eu
…
corrompida pelas minhas próprias ações
ou pela falta de ação
pelo querer
ou pela falta do querer
pela apatia
pelo medo
pela covardia
pela raiva:
contida ou
incontida
…
um eu contido
comprimido
espremido
repicado
deturpado
desfocado e:
replicado
em cores
repetido
e sobreposto
exposto:
e ao mesmo tempo
distante do que é real
…
seria isso então?
a manipulação de defeitos
na intenção de uma aparência
que eu considere legal?
…
eu:
um erro proposital
…
inevitavelmente:
fatal