Instapoesia: um marcante fenômeno da atualidade

Estilo poético bastante popular, os versos que circulam na internet reviveram o interesse pela poesia. Mas qual é, afinal, seu valor literário?

Editorial Fazia Poesia
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Fonte: Pixabay

Se analisarmos a história da literatura e dos hábitos dos leitores, percebemos que quase toda revolução tecnológica foi acompanhada, cedo ou tarde, por mudanças nas práticas de leitura. Seja na imprensa, seja na industrialização, na eletricidade ou na transmissão de dados por satélite, tecnologia e literatura possuem uma relação mais intensa do que inicialmente poderíamos imaginar — e a poesia sempre tirou proveito disso. Já em meados dos anos 1960, por exemplo, quando as câmeras Super 8 possibilitaram que qualquer um filmasse vídeos caseiros, surgiu a videopoesia, forma poética popular até hoje e que no Brasil ligou-se bastante ao movimento da poesia concreta.

Juntamente a isso, outro fator pouco discutido em círculos literários são as formas como a literatura “erudita” se entrelaça com a “popular”, e vice-versa. O campo dos estudos literários mostra-se ainda engessado demais em conceitos estabelecidos para dar a devida atenção a isso — uma pena, pois é de importância significativa para entender a poesia “pop” contemporânea, ainda pouco considerada pela intelectualidade e pela crítica.

Dito isso, na atual era das plataformas digitais, um fenômeno bastante popular exemplifica essas relações e entrelaçamentos: a instapoesia. Possivelmente você já ouviu falar dela e, se não ouviu, provavelmente já a viu enquanto navegava pelo Instagram ou pelo Facebook. De versos curtos, linguagem acessível e temas relacionáveis, esse estilo poético contemporâneo é produzido por escritores que, buscando novos meios de difundir sua poesia muitas vezes inédita em formato físico, voltam-se a redes sociais como o Instagram para publicar seus textos — o que talvez seja irônico, considerando que a plataforma surgiu inicialmente para compartilhar fotografias.

Os instapoetas, porém, não se abalam e até brincam com isso, em um mosaico íntimo e compartilhável de texto e imagem, formando comunidades de seguidores que não só leem seus poemas, mas também influenciam o processo criativo com o retorno quase instantâneo que as redes sociais proporcionam. Muitos instapoetas, inclusive, sabendo que, como plataforma, o próprio Instagram interfere na circulação do que publicam, aprendem conceitos de marketing digital, ferramentas de análise de algoritmos e técnicas de SEO para melhor divulgarem seu trabalho. Como resultado, é comum esses poetas já possuírem séquito estabelecido de fãs quando publicam seus primeiros livros impressos.

Mas afinal, levando em conta estudos sobre literatura e mídia, qual seria o valor literário desse vasto mundo da instapoesia? O que ela tem de poesia “autêntica”?

Um elemento desse estilo de escrita que logo chama a atenção dos estudiosos de poesia é a linguagem usada, que foge da geralmente encontrada na poética tradicional, a ponto de se tornar quase um traço específico seu. Os poucos estudiosos que se debruçaram sobre os “instapoemas” inclusive chegaram a se perguntar o que ainda permitiria chamar alguns deles de poemas. Se a discussão sobre o que afinal é poesia complicou-se a partir do Modernismo, o Instagram só a articulou ainda mais, e instapoetas dão-se uma liberdade total de ressignificar essa forma literária e todos os seus gêneros e subgêneros, em um hibridismo de texto e imagem, prosa e verso, que tende a um afastamento da poesia clássica, seja na linguagem, seja na apresentação ou nos temas.

Um exemplo é Paolo Gambi. Nascido em Ravenna em 1979, esse escritor italiano (que é também jornalista, artista performático e pesquisador em assuntos histórico-legais) já escreveu diversos trabalhos de ficção e poesia, e encontrou nesta última um canal para expressar uma escrita mais contemporânea, relacionando a literatura com as novas tecnologias em uma instapoesia que alia a arte a QR Codes e até a NFTs.

Paolo Gambi (2023)

Dito isso, é bom abordarmos também os temas: uma característica perceptível da maior parte dos instapoemas é o ressurgimento de certo lirismo confessional que beira ao confessionalismo (e ao mesmo tempo dele se diferencia) de meados do século passado. Se a instapoesia compartilha com a poesia confessional o foco em experiências e traumas individuais, muitas vezes abordando questões sociais vistas como tabu (as novas dinâmicas familiares, a conscientização da saúde mental, as diversas formas existentes de sexualidade, o modo como mulheres percebem o próprio corpo…), há uma preocupação ainda maior em abordá-las de forma mais ampla, não meramente individualista. Muitos de seus escritores participam de movimentos sociais e utilizam suas redes como meio de ação e conscientização coletiva. Isso pode ser notado, por exemplo, nos trabalhos da popular instapoeta Alicia Cook, que em sua prosa poética explora questões de vício e depressão de forma igualmente individual e universal.

Alícia Cook (2020)

E talvez justamente nessa nova poesia confessional, a instapoesia conseguiu algo que não se achava que era mais possível na contemporaneidade: evitar que o gênero lírico desapareça. Se por décadas essa crise pareceu irreversível — já em 1910 o italiano Aldo Palazzeschi escrevia, no final de seu poema E Lasciatemi Divertire (“E deixem-me me divertir”), que “os tempos mudaram muito, / os homens não pedem / mais nada aos poetas” — , graças ao Instagram esses mesmos poetas tornam-se novamente relevantes, e o declínio no número de leitores foi revertido.

Um dos maiores exemplos disso é o enorme sucesso da instapoeta indo-canadense Rupi Kaur. Com uma poesia feminina, feminista e expressivamente contemporânea, Kaur tornou-se famosa por como seus textos abordam o corpo da mulher e todas as ideias e imagens construídas em cima dele, criticando uma cultura que o subjuga e violenta e buscando, em resposta, compreendê-lo e emancipá-lo em uma literatura sobre mulheres e para mulheres que ressoa as diversas teorias feministas debatidas nas últimas cinco décadas. Alcançando mais de quatro milhões de seguidores no Instagram, foi apenas após o sucesso digital que ela começou a publicar seus poemas em forma impressa. As três coletâneas que já lançou — Milk & Honey (no Brasil: Outros jeitos de usar a boca, 2014), The Sun and Her Flowers (O que o sol faz com as flores, 2017) e Home Body (Meu corpo minha casa, 2020) — tornaram-se best-sellers da literatura feminina pela editora estadunidense Andrews McNeel, uma das primeiras a publicar instapoetas (no Brasil, os livros de Rupi foram publicados pela editora Planeta).

Rupi Kaur (2014)

Claro que, como em qualquer estilo poético, existe a boa e a má instapoesia. E não é difícil reconhecer instapoemas ruins, aqueles versos apelativos cheios de discursos motivacionais que pouco dizem além do óbvio, como se escritos por um coach ou por um escritor de autoajuda. Isso, porém, diz mais respeito aos poetas individuais do que ao estilo em si — quantos ditos clássicos da poesia não são herméticos talvez até demais? A facilidade com que esses textos circulam pela internet, porém, leva a certo preconceito da crítica conta a instapoesia. São poucos os artigos em revistas literárias que a abordam com seriedade, e, quando ela é mencionada como representação da arte e da estética contemporâneas, é geralmente com certa ironia, como se a atualidade não fosse mais capaz de gerar poetas como Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade — o que com certeza não é verdade: há instapoetas com trabalhos bastante cerebrais, e até poetas de gerações mais velhas têm aderido ao estilo, a exemplo de Guilherme Mansur, mineiro que está sempre antenado nas possibilidades além do impresso tradicional (desde os anos 1990 ele é conhecido por seus videopoemas e performances poéticas) e que hoje publica esporadicamente obras no Instagram.

Guilherme Mansur (2022)

No entanto, uma coisa é inegável sobre a instapoesia: ela vende, e muito. Segundo uma pesquisa de 2017, nos Estados Unidos, coletâneas de instapoetas representaram 47% de todos os livros de poesia vendidos no país durante aquele ano; o primeiro livro de Rupi Kaur vendeu, sozinho, 2,5 milhões de exemplares ao redor do mundo. Se é apenas uma moda efêmera ou uma manifestação literária duradoura, o tempo decidirá. Mas, no momento, o Instagram dá nova vida à poesia, especialmente entre os jovens, público que se considerava tão desinteressado por ela (chegou-se até a considerar que a única poesia pela qual a juventude atual se interessaria seria a cantada). Graças às redes sociais, onde poemas são rapidamente divulgados e amplamente discutidos entre jovens leitores, percebe-se que isso não é verdade.

Aos poucos, a instapoesia chama mais a atenção de estudiosos da literatura e da mídia. Porém, se for para ela de fato se tornar assunto de ampla pesquisa, será preciso desenvolver novas teorias, que melhor analisem sua natureza como poesia pop aliada à tecnologia. Para o bem ou para o mal, a instapoesia é um marcante fenômeno sociocultural da atualidade, com grande impacto nos hábitos de leitura contemporâneos. Longe ainda dos cânones acadêmicos (se é que um dia entrará neles), ela encontra hoje um público ávido por novas formas de ler poesia e por autores que, a exemplo de Kaur ou Cook, explorem essas possibilidades que o mundo digital oferece conforme avança.

David Ehrlich (@davidehrlichbrasil) é natural de Detmold, Alemanha, onde passou os primeiros dois anos de vida. Suas experiências mais importantes, porém, foram colhidas em Curitiba, onde mora. Formado em Jornalismo e especializado em Narrativas Visuais, é fascinado pelo fantástico mundo das artes, em especial a literatura, em que sente maior liberdade.

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