Fragmentos do que não somos

José Tadeu Gobbi
Fazia Poesia
Published in
2 min readAug 3, 2022

--

Noritoshi Hirakawa / Cultura Inquieta

Era ouro de tolo
o sutil alaranjado da echarpe
que você usava.

Teus seios se projetavam no espaço
como canhões na muralha de um forte,
um misto de fascínio, ameaça e perigo.

Havia algo intrigante neste encontro,
teu olhar varria o ambiente como um scanner
e fixava-se num ponto qualquer, buscando uma lembrança.
Lembro que você moveu o rosto
e sussurrou algo como “que bom que você veio”.

No teu olhar vi algo inquietante,
dor de dente, desconforto menstrual, não era doce.
Todos os meus sentidos ficaram em alerta.

O tom modulado da tua voz,
confortável, nem agressivo ou suave,
era uma armadilha oculta.

O doce mel vinha com um enxame de abelhas,
eu não devia estar lá,
o que cativa em você está impregnado de sofrimento,
estava no ar, no entorno, próximo demais.

Súbito, as coisas não se encaixam,
o lugar, o tempo, a temperatura, os sons, os odores.
um caos sensorial turva o raciocínio.

O toque na teia tinha acionado o instinto da aranha
que rapidamente teceu seu emaranhado.

Tua beleza combinava signos, chamava atenção.
O decote no elegante vestido
revelando os contornos do teu corpo,
pernas expostas nos limites entre o sofisticado e o vulgar,
e um quadril voluptuoso torneado de uma cintura fina,
uma perfeição ameaçadora.

Mal-estar recorrente,
tudo tão perfeito e simultaneamente tão sem sentido.
As palavras fluíam e formavam imagens,
construíam personagens com sofismas.

Não sou este macho alfa sensível que adora Almodóvar
nem você é uma deusa grega preocupada com bichos.
Há mais verdade nos longos silêncios
que construímos entre nossos sorrisos.

O que parece atenção, não é senão um tédio doloroso.
Teu olhar tinha um canto, uma esquina, uma toca, um ardil.
Teu hálito adocicado era veneno puro,
feromônio barato e prenúncio de beijo e paixão
que submete a razão aos instintos.

Séculos de evolução reduzidos ao nada.
Toca uma canção e nos vemos envolvidos.
Não tem sonho de valsa ou ritual pagão,
somos apenas esta coisa patética guiada por uma força primitiva.

Nunca deixamos de ser selvagens,
mergulhamos no perigo seguindo nossa natureza animal
e, num coito selvagem, buscamos preservar nossos genes.
Acabamos prisioneiros de nossos instintos.

Revisão: Julia Tetzlaff Rosas

Ei, gostou do poema? 🤗
Logo abaixo você pode interagir com nossa equipe de poetas
através de claps (que vão de 1 a 50) e comentários.
Continue lendo a Fazia Poesia.

--

--

Publicitário, um brasileiro que crê em valores republicanos e num país que valorize honestidade, competência e talento. Bom te ver por aqui.