Desarticulações

Uma leitura atenta sobre a obra Escute as Feras, de Nastassja Martin

flavia alvs
4 min readJul 19, 2022

Na era dos tweets, feeds e likes, me parece cada vez mais difícil encontrar a disposição e o tempo para me debruçar sobre uma obra literária, ler ela com as devidas marcações nas passagens mais interessantes, para mim leitora/escritora, e extrair do sumo uma mensagem maior. Ainda assim, sem o hábito da transposição metafísica da leitura, é como se me tolhessem a capacidade de voar. Por isso, apesar do cansaço e da falta de tempo inclusive para aguar as plantas, eis que me proponho um retorno às leituras, resenhas literárias, ou ainda, sendo mais honesta contigo, às minhas modestas impressões sobre as coisas que leio.

Hoje, quero falar do livro Escute as Feras, da antropóloga Nastassja Martin, e da viagem de reconhecimento desta mulher sobre limites, corpo e território a partir do confronto dela com um urso. E então, o meu primeiro bloqueio. Como falar de um livro que conta a história de uma mulher que saiu no soco com um bicho desses? E viveu?

Não há meios de discorrer sobre uma coisa dessas. É grande demais para caber nas constatações de um terceiro sobre aquilo que se sucedeu entre a autora e o animal. Quem sabe o urso, se fosse possível. Mas não é o caso. No entanto, achei válido pontuar algumas impressões da autora sobre seus registros e trazer a você, que me lê, de que jeito esse bonde bateu em mim.

Afinal, como o próprio nome sugere, este livro é sobre escutar as feras, as de dentro e as de fora, e isso tem muito mais que ver com o humano do que com o urso, a baleia, o dragão, enfim. Com a besta que a gente prefere chamar de nossa.

Alerta spoiler! Este texto contém informações sobre a trama. Caso seja uma pessoa apegada com a concatenação dos fatos, pare por aqui. Mas saiba que este texto não invalida de maneira alguma a experiência da leitura, que, de maneira análoga àquilo que conta, traz consigo um exercício de reflexão sobre o que se é, o que se sente e com quantas fendas se inicia uma transmutação.

E agora, vamos à trama.

A história se inicia com a chegada de uma mulher francesa em um hospital de campanha russo com o maxilar destruído pela mordida de um urso (pois é, um urso) e então, o primeiro assombro — ela sobreviveu. Não era possível, mas sobreviveu.

E então a autora nos apresenta sua primeira constatação: o assombro. O espanto do homem, e o incômodo do homem por aquilo que não entende. Afinal, como uma mulher, uma estrangeira, poderia ter entrado em combate com um urso, feri-lo e sair com vida?

E aí, porque não morreu, a primeira constatação cede lugar à segunda: o gosto do homem por sangue e a espetacular curiosidade do mesmo por feridas. E pouco ou nada importa se a cicatriz se encontra na pele de um corpo consciente de sua condição.

Passado o risco de vida, a autora foi repatriada à França. Família e autoridades francesas acharam pertinente trazê-la para perto da tecnologia e do amor do lar. Ao menos, foi o que propuseram a ela, para a filha, irmã e cidadã francesa que costumava ser, antes de se depararem com o que ela efetivamente havia se transformado, uma mulher desfigurada que, surpreendentemente, sentia-se confortável com o novo semblante e contrariada por estar de volta.

Por fim, o grande spoiler.

Do encontro com o urso, Nastassja constatou que viver na floresta é muito mais um exercício de presentificação do que uma aventura natureza adentro. É ser, na maior parte do tempo, a linha que não fisga o peixe e o carro que não dá partida, e acolher esse conjugado de falhas que sobrevive em meio a pequenos acertos ainda que *cada homem em sua noite parta sempre em direção à sua luz.

Leia-se “luz” como desejos, ambições, projeções, etc, dessa vida fantasiosa que a gente carrega com a gente junto daquela que efetivamente acontece. E foi deixando de procurar “a luz”, nos confins do mundo, que a autora se dá conta do seu engano.

O que encontrou foram os ciclos naturais das estações, os dias e as noites, e as pequenas obrigações da vida. De resto, é tudo expectativa e excesso de rancor. Invenções demasiadamente humanas que não se aplicam às feras.

Não nas verdadeiramente selvagens.

*Frase de Vitor Hugo

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