A vírgula entre terra e água em “Uma vírgula no findomundo”

Uma resenha de Zeh Gustavo, por Karenina do Nascimento Rodrigues

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Créditos: Matheus Bibiano/Editora Libertinagem.

O que seria da língua escrita sem os usos da vírgula? Pausa, separação, omissão e realce existiam na oralidade antes das regras da língua. A vírgula poderia entrar em extinção com o findomundo, mas os silêncios findariam? Existe findomundo quando o mundo não se fecha em nós? O mito de que a vírgula serviria para o respiro foca as pausas e os silêncios. Será um mito no sentido cientificista do século XIX? Será um mythos no sentido grego de origem, narração? A narrativa deixa o silêncio ao mesmo tempo que é constituída por ele.

Uma vírgula no findomundo não parece abrir mão de nenhum dos sentidos possíveis para a vírgula, embora prefira deixá-la entregue ao decoro da poesia contemporânea. Esta aparece tematicamente dominada por dois elementos principais, a terra e a água, contrastados pela inspiração da capa. A dessecação principia o livro, que está dividido em recolha, debulha, aspectos linguístico-fisiológicos do silo, descida na água-sangue do solo que cede e enxugo. O primeiro poema é dedicado a um artista brasileiro, Hugo Carvana, ator e diretor carioca falecido em 2014. O corpo morto faz hipóstase, e a circulação sanguínea para em direção à terra.

É um prenúncio da vírgula enquanto poema e poesia, matéria e metáfora. Trata-se de um sinal de pontuação como metáfora de um mundo que convive com o fim e o infinito. A vida e a morte com seus mistérios insondáveis. O poema, que é a forma do texto escrito, com suas pontuações, liga-se ao sólido, àquilo que pode ter formas e pesos definidos. A terra, com seus solos e vulcões, figura a produtividade, o trabalho, o corpo. Pode ser terra fértil, ou mesmo pedra, fundo agrícola, o workaholic obcecado pelo corpo e pela matéria. A cidade urbanizada com seus blocos de concreto inclinados à devastação. Da água são os rios e mares, universo do sensível e da flexibilidade. Sua superfície navegável não é menos profunda que a terra dos sonhos da poesia.

Os mares abertos de textos ampliam sentidos conformados numa forma. A água pode ser acomodada por diferentes receptáculos, mas, quando derramada, não pode mais voltar atrás. Quando afoga, suprime o ar da vírgula. O poeta alerta para as palavras serem consumidas em prato fundo, como sopa, associada à eloquência, pois a poesia é a comida que muitos não têm à mesa. Ao ser terra fértil, pode acrescentar os elementos do soprafogos, embora possa ser o Narciso enamorado da superfície das águas, aquele que deseja tanto o corpo, que fica preso à matéria. A água sendo aterrada pelos projetos civilizatórios de cidade.

A vírgula habita o fundo do abismo de seu narrador quando se entrega aos prazeres da modernidade e do progresso que ele tanto combate. Em primeira ou terceira pessoa, o narrador tem hábitos noturnos como a lagartixa, o animal-terra que sabe nadar quando necessário. Ele olha a lagartixa como quem olha para a superfície de si, o lugar de escalada do réptil. Costuma se deleitar com os entrecopos de bar pé-sujo e ânsias pornôs, fazendo um tipo boêmio citadino que, a passeio, conhece o mei do mato, onde nem seu cão (animal altamente domesticável) está habituado. O personagem é domesticado pela cidade que critica. A cidade é o Rio de Janeiro, tão grande quanto provinciana, do samba e do horizonte recortado por montanhas que sobrevivem à destruição de paisagens e corpos negros.

O narrador é andarilho de cidades que lhe são estranhas: Cuiabá-MT, Curitiba-PR, Brasília-DF, o morro de Serra Grande-RS, ou Montreal, no Canadá, caracterizadas respectivamente pelo cerrado, bem como por tempestades, neblina e gelo. O lugar imaginário é uma aldeia, a Praça Bela. O feminino também é estranho ao narrador: aparece com o amor em cardápio indigesto; como uma bolsa-pasta chamada Maria Cecília; o lesbianismo; ou através da viúva, da mãe e da filha de Um filme falado, do cineasta português Manoel de Oliveira. Por outro lado, o narrador é familiarizado com poetas como Mia Couto, Carlos Ávila, Luis Turiba, Charles Bukowski, Fernando Pessoa e seu heterônimo Alberto Caeiro, e o artista Gilmar Stahl.

O universo musical é reconstruído de forma cômica a partir da realidade de músicos contratados para animar as festas da elite burguesa carioca, incólume a músicas consideradas hoje eruditas. Se o samba não é mais tão moderno quanto a chamada música crente-funkonstenta-certanojo, ele ainda é explorado comercialmente pela cidade maraviltosa, cheia de entusiastas burgueses. O lugar mitológico de toda essa areia movediça é o mufundo, lugar de gentes e dos quatro elementos. O vento vem após o temporal e ressurge pelos voos de um sonho. A vírgula é um mote narrativo sobre o eclipse do findomundo.

Referência da obra: GUSTAVO, Zeh. Uma vírgula no findomundo. São Paulo: Libertinagem, 2022.

Karenina do Nascimento Rodrigues é atualmente doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp. Atua principalmente nas áreas de Literatura e História Modernas. Seu trabalho foca a figuração de feminino nas peças teatrais lopescas, com a percepção sobre a materialidade da impressão e as especificidades do gênero cômico no século XVII.

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