A pintura e a escultura na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen

Iva França
Fazia Poesia
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7 min readJul 31, 2023

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Colagem Poética, de Iva França: Cartazes de Vieira da Silva em comemoração ao 25 de abril e os cravos, que representam a liberdade / Revolução dos Cravos (1974).

Sophia de Mello Breyner Andresen costumava abraçar todas as causas sociais para si. Transitava por todas as artes. Escrever sobre as suas tantas faces não daria num artigo, mas cabem alguns trabalhos interartísticos para entender as fronteiras entre a poesia, a pintura e a escultura, buscando a representação verbal e visual que a aproxima de Maria Helena Vieira da Silva.

Nas relações humanas, por vezes, há uma tentativa de sobreposição ao outro. Entretanto, ao encontrar-se diante de uma produção artística, seja da música, da dança, da literatura, seja do teatro, do cinema, da pintura, da escultura, algumas pessoas tomam-se pela contemplação minuciosa dessa produção.

A partir daí, a arte talvez possa propor um outro olhar sobre o outro e sobre si. No Livro do Desassossego, Fernando Pessoa diz do poder da arte: “A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação”. Pensar que a arte dá conta de nossa existência e de nossas deambulações para nos tirar ou pôr no eixo, para nos fazer refletir sobre as coisas do mundo uma vez que produz conhecimento é pensar que se pode transformar situações da vida através da arte, seja ela qual for. Nesse contexto, podemos experimentar os efeitos das concepções artísticas — que mexe com os nossos sentidos — a vivermos emoções diferentes quando da apreciação da arte.

Sophia e Vieira, uma relação na poética do espaço

A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen nunca é desligada do real. Dessa forma, relembro que “o poema habitará/o espaço mais concreto e mais atento”, pois de fato, como todo artista, Sophia traz consigo a palavra e as coisas do mundo. As imagens em sua obra estão sempre a encher os nossos olhos, por isso a importância dada à contemplação dos poemas que se referem a pintura e escultura. A pintura de Maria Helena Vieira da Silva, por outro lado, vem vincular por vias de amizade, por apreciação mútua e pela convergência, o “itinerário” que remete ao sentimento de memória de espaço e de tempo, aquilo que se encontra no tempo. Nessa presente intermedialidade entre a poesia e a pintura, está contido o espaço de Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva:

As paredes, o chão, o tecto avançam para o fundo. Mas no fundo outro espaço desponta. E em cada espelho um novo espaço nasce. É um lugar onde tudo está atento, denso de memória e de veemência. Lugar de revelação, espanto, cismar e descobrimento.

Obra de arte de Maria Helena Vieira da Silva — Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva — Fotografia do meu arquivo pessoal.

Vieira da Silva nasceu em Lisboa, em 1908, e faleceu em Paris, em 1992. Foi uma importante pintora portuguesa, que se naturalizou francesa em 1956, após residir 28 anos na cidade Luz, onde conheceu Arpad Szenes, também pintor, com quem se casou. Em Lisboa foi fundada, na honra dela e do marido, a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, dentre outras homenagens. Sophia mantinha uma forte relação de amizade com o casal. Entre a obra de Vieira da Silva e a de Sophia há a convergência libertadora de duas mulheres que viveram tempos sombrios. Vieira sofreu com a expatriação, e Sophia, com o fascismo. Ambas foram impedidas de sonhar o sonho da liberdade. Essa dificuldade as impulsionou a criar sob a cena dos conflitos, e, no pós-conflito, concretizaram obras emblemáticas, que fazem uma leitura intermedial entre poema-imagem, que hoje nos servem como referência para compreender a importância da força dessas artes. Sophia escreve a poesia “Liberdade”, sobre o cartaz de Vieira, em comemoração ao décimo ano do 25 de abril, em 1984:

O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba –
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos

Obra “Liberdade”, de Vieira da Silva — Fotografia do meu arquivo pessoal.

A poesia de Sophia cruza seus caminhos com o cartaz de Vieira da Silva demonstrando o mesmo desejo de Liberdade. Sophia escreve sobre a questão do tempo geométrico do caos, onde sua poesia emerge. Ela vê a geometria e o caos através da obra de arte como na pintura Landgrave de 1966, de Maria Helena Vieira da Silva. Nessa pintura, Vieira da Silva cria espaços imaginários. Para Sophia de Mello Breyner “há uma dialética caos-cosmos em toda obra de arte”. Nessa relação as obras articulam e refletem a intermedialidade na relação da palavra e da imagem, tratando sobre o mesmo contexto social e político — espaço e liberdade. Nesse caso, tanto a artista plástica quanto a escritora são arrebatadas pelo mesmo sentimento, e as obras cumprem a função de persuadir o leitor, de forma sintomática, da retomada da vida liberta, pois essa necessidade está aflorada em cada palavra atravessada.

Há um diálogo concreto, forte, que une Sophia e Vieira. Esse diálogo se inicia pela querência da liberdade, da realização e da vida inteira, não pela metade. A arte as liberta e as une. A pintura e a poesia vão à rua, invadem as casas e as tornam o que são, palavra-imagem:

Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio.

Nesse poema dedicado à Maria Helena Vieira da Silva, a poetisa revela as imagens labirínticas das muitas vozes que ecoam pelos caminhos rodeados de encruzilhadas, mas que ainda assim emergiram. E foi na guache que Vieira pintou o 25 de abril, ao que Sophia disse:

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo, da poética do espaço.

Em Landgrave […], Sophia preocupa-se em fazer uma leitura minuciosa ao lembrar a poesia ecfrástica:

O ar está queimado pelas luzes como o ar de um palco. Todas as cores se reflectem umas nas outras. Há um difuso tremular luminoso como o das escamas de um peixe. Os múltiplos espelhos formam uma rede de escamas: amarelas, cor de barro, cinzentas, rosadas, negras, cor de nácar, cor de pedra.

A escultura na poesia de Sophia

Imagem retirada do livro “Arte e Ilusão”, de Gombrich. Arquivo pessoal.

Na intermedialidade entre a poesia e a escultura, Sophia Andresen apresenta a pintura e a escultura e retira delas a palavra decisiva para romper os limites do silêncio. Tem sido comum os poetas utilizarem outras mídias em suas criações. Nesse aspecto, essas relações intermediais constituem em si um efeito de observação muito mais apurado do objeto a ser observado. A poesia de Sophia é dada a denunciar aquilo que a toma, que a tira do eixo, entretanto há por outras vias o momento de total contemplação do humano, como nas esculturas gregas.

O estudo O Nu na Antiguidade Clássica. Antologia de Poemas sobre a Grécia e Roma dará a base, que de alguma forma nunca se esgota, para buscar compreender a relação da poesia de Sophia com a escultura. Segundo a poeta, “o corpo humano para o artista grego não é o modelo, mas um módulo […] O que o grego espera do artista é que lhe revele o divino”. É o fenômeno em que o ser se manifesta, emerge e brilha. É ser, estar, aparecer. Para Sophia, “no corpo o ser emerge, é, está”.

A intermedialidade presente na relação poesia-escultura, vislumbrada nas obras gregas pelo fenômeno do homem como divino-belo, traz à luz a clareza, a aparição das formas presentes nas esculturas como citado na poesia intitulada “Delphica II”:

Esse que humano foi como um deus grego
Que harmonia do cosmos manifesta
Não só em sua mão e sua testa
Mas em seu pensamento e seu apego
Àquele amor inteiro e nunca cego
Que emergia da praia e da floresta
Na secreta nostalgia de uma festa
Trespassada de espanto e de segredo
Agora jaz sem fonte e sem projecto
Quebrou-se o templo actual antigo e puro
De que ele foi medida e arquitecto
Python venceu Apolo num frontão obscuro
Quebrada foi desde seu eixo recto
A construção possível do futuro

Para concluir, fazendo jus ao espírito dessa mulher que tem faces múltiplas, que, sendo socialista e aristocrata, entendeu o socialismo como “uma aristocracia para todos” e que a poesia precisa ter transparência, como a vida, Sophia de Mello revela-se poeta incomentável e diz que a palavra poética não se engana.

Referências
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra Poética. Prefácio Maria Andresen Sousa Tavares. 3. ed. Assírio & Alvim: Porto, 2015.

GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um Estudo da Psicologia da Representação Pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. 5. reimpr. São Paulo: Organização de Richard Zenith, Companhia das Letras, 2006.

Iva França nasceu em Viana/MA, mas foi criada no subúrbio carioca, lugar de afeto e de inspiração para suas histórias. Hoje vive em João Pessoa/PB. Sua filosofia profissional é tornar a vida mais leve e mais afetuosa. Por isso, põe poesia em cada caderno confeccionado e em cada livro que escreve. Publicou em 2013 o livro Flor de Maio — Poemas Oferecidos e tem participação em diversas antologias de contos e de poesias. Publicou em 2022 o livro de contos Lola — Todas as mulheres e lançou em 2023 o livro Caderno de Rascunhos — Poemas. É pesquisadora do feminino. Escreve poemas e contos e faz livros e cadernos artesanais criativos-curativos. Transita entre a literatura, a fotografia e a colagem. É mestra em Literatura Portuguesa (UERJ), professora de Leitura e Produção Textual, Literaturas de Língua Portuguesa e Criação Literária. Ama a cor azul. Gosta de flores, de bem-te-vis, libélulas e nuvens. Adora dançar!

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Literatura e Criação Literária, escritora e colagista. Autora do livro de contos, Lola-Todas as Mulheres e poemas,Caderno de Rascunhos e O Lúdico Poético em Nós