8 poemas intrépidos de Thaís Campolina
O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre uma galinha garnisé numa revista Globo Rural dos anos 1980, mas também serve pra Thaís Campolina. Além de ave atrevida, essa divinopolitana é autora do livro de poemas eu investigo qualquer coisa sem registro (Crivo Editorial, 2021), do conto avulso “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” (2020) e de um mundo de textos publicados em blogs, revistas e coletâneas. Thaís também medeia, organiza e faz curadoria do Leia Mulheres Divinópolis, sua cidade natal, e é a criadora e faz-tudo do clube de leitura online Cidade Solitária.
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entre o cotidiano e a poesia
Sim. Estamos diante do delírio com as coisas reais sobre o qual o velho Belchior cantava; estamos perto daquele olhar de haikai de uma poeta que arranca do seu dia a dia (e, quando digo, isso falo não só do captar beleza na natureza que nos cerca, ou das atividades triviais de todo poeta humano), estou falando de arrancar a poesia de textos legislativos ou de notícias aleatórias de LinkedIn, estou falando da arte de retirar sentido da própria linguagem, da vida, do próprio sentido das coisas que não fazem sentido. O mais interessante é que essa extração não é realizada com aquela febre enlouquecida e raivosa dos velhos simbolistascabalistas (Alô, Mallarmé), mas sim com uma leveza.
De criança?
Quase.
De poeta.
técnica legislativa
PRÊAMBULO
esse poema entra em vigor na data de sua publicação
ele não diz nada que você não saiba
mas estabelece prazos novos
procedimentos especiais
e tira o conforto criminoso
de um ou outro homem
que vê essas palavras reunidas
e só se assusta quando nota
um nome feminino
que ousa publicar
poemas-lei
CAPÍTULO I
saiu um poema no diário oficial
ele mesmo se chama de porcaria
CAPÍTULO II
daqui para trás
somente leis
que criam direitos
para o povo
são permitidas
de hoje em diante
tudo será diferente
depois não diga
que não leu as letras
miúdas
CAPÍTULO III
morrer será proibido
viver mais ainda
eu não faço ideia
de onde você vai
enterrar seu pai
talvez no seu quintal
ou no lote da esquina
aqui não
aqui não pode
já tem morto demais
o cemitério está lotado
todo dia morre vinte trinta cinquenta e cinco
e nosso espaço comporta nem dez
CAPÍTULO IV
já notou
como a estrutura
de uma lei pode
ser subvertida
pode virar até arte
um poema moderno ruim
um papo sobre escrita não criativa
uma colagem de palavras
muito consultadas
em qualquer
dicionário
um poema-lei
todo dividido em artigos longos
que não dizem nada demais
e incisos que fingem trazer
[concretude]
ao que é feito para ser
~abstrato~
DISPOSIÇÕES GERAIS
a lei é metafísica
o poema também
o concreto e o real dependem
de um encaixe especulativo
nada perfeito
o que dizem
estrofes & versos
parágrafos & incisos
e muitas alíneas
sobre fatos & verdades
que são só suas?
memória celular de um peixe abissal
à toa e preocupada
exploro minha casa
como se fossem vivos
os móveis e as paredes
um demônio me provoca
⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀⠀ ⠀ ⠀e eu respondo oi
entregando que estou
perto da janela da cozinha
cinco segundos depois
curiosa e ávida por um pão
olho direto para o inferno
esperando a vertigem
desse sumidouro
a oxigenação do cérebro
continua a mesma
a pulsação também
meus cotovelos dobrados
esbarram na toalha de mesa
me fazendo sentir na pele
o carinho de um mundo
de farelos esquecidos
nessa voragem
não há tontura
nem taquicardia
eu sei que estou
onde deveria estar
usando bons binóculos
frente ao espelho do banheiro
consigo olhar de volta
e me ver a qualquer tempo
caçando no escuro
mais alimento
o abismo sou eu
e ai de mim
se não continuar
a nadar
patuscada
vrum vrum vrum
não são pneus cantando
são pés corrompidos
por um papibaquígrafo
de arranjos ansiosos
que vem de uma fome
de ritmo e de janta
um mexido que vem
da vontade de comer
somos animais que migram no verão
já tentei
meditação yoga
corrida krav magá
caminhada ansiolítico
terapia chás
mas é só olhar para o mar
que faço as pazes comigo
o problema é
moro em BH
(me desculpem
as capivaras
o jacaré da pampulha
cada dia mais gordo e tranquilo
a lagoa não é suficiente:
serve melhor aos meio-maratonistas)
a memória dos rinocerontes
cacareco foi uma rinoceronte fêmea
que comia sem frescura
caules raízes
ervas folhas
se era mato
ia pra dentro
até que um dia
cacareco recebeu
100 mil votos para vereadora
da maior cidade de um país
que nem era o seu
cacareco nunca assumiu cargo político algum
nem ficou sabendo das 100 mil pessoas
que escreveram em uma cédula em branco
seu nome
cacareco simplesmente continuou
comendo as plantas lenhosas
que nasciam na sua jaula
do zoológico
se era mato
ia pra dentro
até que um dia
cacareco virou memória
todo poema é feito de cacarecos
rinocerontes ou não
nem todo poema é feito
do que se encontra
nos anais da história
mas esse é
lar
duvido dos meus contornos
da largura do meu pulso
do tamanho dos meus braços
da área das minhas coxas
de como ocupo a cama
me espalho pela casa
e pareço refletida
no espelho do banheiro
o desaparecimento
parece inevitável
uma mulher escondida
se dilui em seus pertences
e se aproxima
cada vez mais
de uma coberta
felpuda e confortável
férias de verão
ou 14 elefantes incomodam muita gente
14 elefantes viajam pela China nesse momento
formando juntos um coletivo de andarilhos
com motivações desconhecidas
14 elefantes viajam pela China nesse momento
intrigando juntos massas de pessoas
com motivações reconhecidas
14 elefantes viajam pela China nesse momento
sendo observados por curiosas espécies locais
de cientistas turistas autoridades
e eus
a manada percorre
tempo território espaço
e numa lógica animal
visita vilas cidades condados
atravessa rios
trilha estradas
ocupa fazendas
desviando de drones
que tentam fazer o bando
voltar pra casa
sem nem perguntar
o que eles acham disso
rota migratória
retiro espiritual
desejo por aventura
simples teimosia
fuga
não importa o nome
um cara branco vai
escrever um texto no LinkedIn
sobre a força de vontade
desses bichos enormes e motivados
um jornalista brasileiro vai
publicar a tradução de uma matéria gringa
sobre esse intrigante mistério
animal
e eu
eu vou fazer um poema
sobre a memória
dos elefantes
notícia de um milhão de euros
três figuras sem rosto encaram um homem em seu primeiro dia de trabalho
o homem tem rosto e parece entediado
nunca sabe para onde as três figuras olham
parte do trabalho de um profissional da segurança da arte envolve medir a distância das mãos das bolsas e dos olhos dos planos, ele diria se quisesse se justificar para o fantasma de Anna Leporskaya
mas ele não diz nada
mesmo demitido e ameaçado de ter que quitar uma multa e ainda pegar três meses de cadeia na Rússia
ele apenas não diz nada
exatamente como as três figuras sem rosto que ganharam temporariamente olhos continuam a fazer mesmo ostentando essas novíssimas bolinhas de gude transparentes na cara
essas bolinhas discretas feitas sob medida por um estranho homem de 60 anos
esses olhos-bolinha desenhados pelas mãos criativas de um homem que se recusa a se explicar
esse homem que andou por todo um museu empunhando uma perigosa caneta esferográfica
esse criminoso que está sempre pronto para rabiscar olhinhos e carinhas felizes onde conseguir chegar com sua BIC ou semelhante russa
um homem que jura não ter nada a dizer
talvez porque no lugar de rabiscar bocas
ele escolheu abrir olhos
olhos com data marcada para se apagar
isso se o fantasma de Anna Leporskaya deixar
Thaís Campolina é a poeta selecionada para a coletânea de agosto. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.
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