7 poemas despertos de Saru Vidal
saru vidal, poeta coletaneada neste artigo, tem 30 anos, é de Lisboa — Portugal e mora atualmente em São Paulo. Ela faz doutoramento no Programa dos Estudos Feministas (FLUC/CES). É mestre em Estudos Africanos (pelo ISCTE-IUL) no ramo Estado e Política. Tem licenciatura em Antropologia. Formou-se em Técnica de Apoio à Vítima/Sobrevivente de Violência Doméstica (pela Planoi, em 2022). Publicou o seu primeiro livro, Memórias do Corpo e seus Ismos (pela editora Urutau), em parceria com Caroline Ramos. No ano passado, participou do Festival Internacional de Cinema Femme no Porto com o projeto fotográfico coletivo ‘estecorpo’, focado na desconstrução do corpo e da identidade.
É autora de bagagem — o que tornou a viagem poética de conhecer e selecionar seus textos uma jornada deliciosamente desafiadora. Todas as suas obras dizem algo, e imprimem algo, e saboreiam, e escancaram um bocado. Eu diria ser a vida em si, pois Saru aborda temas cotidianos e igualmente ímpares, como quem pensa e deglute cada um deles ainda no raiar de um dia. Sua escrita é transparente e deveras convidativa — chamando-nos para refletir com ela, sentar para o café, como um conhecido antigo que ouve histórias de prazer e dor, histórias íntimas de uma poeta.
coração rasgado
os sons da rua têm me acordado todos os dias:
pessoas apressando-se para o ponto do ônibus.
carros arrastando o asfalto da estrada.
aviões atravessando as nuvens.
antes do despertador, acordo
com os olhos sobre o céu.
a feira inda nem começou e já estou na euforia
da criança que deseja comer o mundo,
devagar.
Genealogia
O subconsciente conserva os ínfimos detalhes, os primeiros contatos orais, as primeiras palavras geradoras da vida: ‘mamãe’ e ‘água’.
Os primeiros gatinhares e caminhares, as primeiras viagens libidinosas,
os primeiros desejos, os primeiros sinais da manifestação da desintegração da identidade.
A carne, que outrora atravessou todos os arquétipos históricos: A diaba sensual, a doce filha do mar, a Medusa sem corpo, a mulher de Ló transformada em pedra, a feiticeira queimada, a viúva-negra que assassinou o homem,
até abraçar a primavera, carente e afetuosa, intercontinental.
Após as mortes, o corpo serenou, finalmente.
Amor instantâneo
I
Lua em capricórnio,
alguns copos de vinho tinto
poesias recitadas
And I follow you in Instagram
NOW
As often as I want
I can
see
u?
II
Legal ter você, aqui.
Que bom te encontrar
Você gosta deste lugar?
Gosto de te ver.
Sim, a cidade é bonita.
Quer ver as estrelas?
Não tenho tempo.
Quero.
III
Em tempos de amor instantâneo,
amar
tornou-se
acelerado,
urgente.
O consumo é esfriado.
Onde está a construção para além do instante,
sem ser narcisista hedonista?
Saudosismo estruturalista?
Babilónia
agora que virei as costas,
o amor petrificou-se.
por que é no adeus
que nos damos conta
de que amamos?
É porque o amor é como as pedrinhas
que se agarram entre os dedos do pé
após um dia de praia.
Intervalo de tempo
Nas breves pausas entre o meio-dia,
o fumo do cigarro navega, o café exala
pela rua a céu aberto.
É um tempo musculado por percepções,
um lembrete de que a vida é mais que trabalho.
Nos interstícios do tempo ocidentalizado,
humanos brincam com os deuses,
inalam o fumo do cigarro-moderno
e tragam o café do meio-dia a céu aberto.
In/submissa
Durante um dia fui fielmente submissa às suas palavras,
às suas necessidades, aos seus caprichos, aos seus desejos de ejaculação física
e mental.
Durante um dia fui fielmente submissa às suas ideias, que obviamente eram mais avançadas do que as minhas ideias pouco críticas
e psicanalíticas.
Fui fielmente submissa à sua falta de rotina, à sua hora tardia de chegar a casa, a sua falta de capacidade de cuidar de si.
Fui tão fiel que até quando tinha sonhos eróticos com outras pessoas eu sentia culpa
e punia-me.
Fielmente submissa à sua monogamia imposta,
e ao seu medo incessante de ficar sozinho em casa.
Aceitei que fosse o meu cachorrinho abandonado,
que controlasse todos os meus passos,
não fosse a diaba tecê-las.
Eu, fielmente submissa, acreditei nas suas histórias mais descabidas, nas balelas mais falsas.
Aceitei que os seus ciúmes pelas minhas conquistas arruinassem qualquer ato de mérito próprio.
Afinal, como ele sustentaria o seu ego?
Fui fiel à sua miséria de espírito, à sua maldita espécie,
cismacho, à sua imaginária superioridade biológica intelectual,
Durante um dia eu fui fiel à missa da socialização silenciadora,
que os media normalizam, que os livros mercantilizam, que a educação reproduz, que a família mantém, que a política continua, que a religião católica diviniza
Mas, hoje, eu sou poeta insubmissa e assisto fiel à missa do macho invejoso.
Notas do quotidiano
Impulso de acolher o amor,
como uma concha que acolhe a maré.
Gastar o tempo com afeto;
corpo grudento, quente e molhado.
Sentir a água penetrar o estômago,
transformando-se em formigueiro vulvar.
O gosto salgado na língua. uma lágrima no canto do olho.
Dolerse: permitir-se afetar-se com a paisagem.
onde corpos, teias e suspiros sensíveis tricoteiam na praça.
Como é bom sentir-me vivo/ Como é bom o sono profundo.
Como é bom sentir-me alegre/ Como é bom o choro entranhado.
saru vidal é a poeta selecionada para a coletânea de fevereiro. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.
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