7 poemas despertos de Saru Vidal

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia
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4 min readFeb 14, 2024

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saru vidal, poeta coletaneada neste artigo, tem 30 anos, é de Lisboa — Portugal e mora atualmente em São Paulo. Ela faz doutoramento no Programa dos Estudos Feministas (FLUC/CES). É mestre em Estudos Africanos (pelo ISCTE-IUL) no ramo Estado e Política. Tem licenciatura em Antropologia. Formou-se em Técnica de Apoio à Vítima/Sobrevivente de Violência Doméstica (pela Planoi, em 2022). Publicou o seu primeiro livro, Memórias do Corpo e seus Ismos (pela editora Urutau), em parceria com Caroline Ramos. No ano passado, participou do Festival Internacional de Cinema Femme no Porto com o projeto fotográfico coletivo ‘estecorpo’, focado na desconstrução do corpo e da identidade.

É autora de bagagem — o que tornou a viagem poética de conhecer e selecionar seus textos uma jornada deliciosamente desafiadora. Todas as suas obras dizem algo, e imprimem algo, e saboreiam, e escancaram um bocado. Eu diria ser a vida em si, pois Saru aborda temas cotidianos e igualmente ímpares, como quem pensa e deglute cada um deles ainda no raiar de um dia. Sua escrita é transparente e deveras convidativa — chamando-nos para refletir com ela, sentar para o café, como um conhecido antigo que ouve histórias de prazer e dor, histórias íntimas de uma poeta.

coração rasgado

os sons da rua têm me acordado todos os dias:

pessoas apressando-se para o ponto do ônibus.

carros arrastando o asfalto da estrada.

aviões atravessando as nuvens.

antes do despertador, acordo

com os olhos sobre o céu.

a feira inda nem começou e já estou na euforia

da criança que deseja comer o mundo,

devagar.

Genealogia

O subconsciente conserva os ínfimos detalhes, os primeiros contatos orais, as primeiras palavras geradoras da vida: ‘mamãe’ e ‘água’.

Os primeiros gatinhares e caminhares, as primeiras viagens libidinosas,

os primeiros desejos, os primeiros sinais da manifestação da desintegração da identidade.

A carne, que outrora atravessou todos os arquétipos históricos: A diaba sensual, a doce filha do mar, a Medusa sem corpo, a mulher de Ló transformada em pedra, a feiticeira queimada, a viúva-negra que assassinou o homem,

até abraçar a primavera, carente e afetuosa, intercontinental.

Após as mortes, o corpo serenou, finalmente.

Amor instantâneo

I

Lua em capricórnio,

alguns copos de vinho tinto

poesias recitadas

And I follow you in Instagram

NOW

As often as I want

I can

see

u?

II

Legal ter você, aqui.

Que bom te encontrar

Você gosta deste lugar?

Gosto de te ver.

Sim, a cidade é bonita.

Quer ver as estrelas?

Não tenho tempo.

Quero.

III

Em tempos de amor instantâneo,

amar

tornou-se

acelerado,

urgente.

O consumo é esfriado.

Onde está a construção para além do instante,

sem ser narcisista hedonista?

Saudosismo estruturalista?

Babilónia

agora que virei as costas,

o amor petrificou-se.

por que é no adeus

que nos damos conta

de que amamos?

É porque o amor é como as pedrinhas

que se agarram entre os dedos do pé

após um dia de praia.

Intervalo de tempo

Nas breves pausas entre o meio-dia,

o fumo do cigarro navega, o café exala

pela rua a céu aberto.

É um tempo musculado por percepções,

um lembrete de que a vida é mais que trabalho.

Nos interstícios do tempo ocidentalizado,

humanos brincam com os deuses,

inalam o fumo do cigarro-moderno

e tragam o café do meio-dia a céu aberto.

In/submissa

Durante um dia fui fielmente submissa às suas palavras,

às suas necessidades, aos seus caprichos, aos seus desejos de ejaculação física

e mental.

Durante um dia fui fielmente submissa às suas ideias, que obviamente eram mais avançadas do que as minhas ideias pouco críticas

e psicanalíticas.

Fui fielmente submissa à sua falta de rotina, à sua hora tardia de chegar a casa, a sua falta de capacidade de cuidar de si.

Fui tão fiel que até quando tinha sonhos eróticos com outras pessoas eu sentia culpa

e punia-me.

Fielmente submissa à sua monogamia imposta,

e ao seu medo incessante de ficar sozinho em casa.

Aceitei que fosse o meu cachorrinho abandonado,

que controlasse todos os meus passos,

não fosse a diaba tecê-las.

Eu, fielmente submissa, acreditei nas suas histórias mais descabidas, nas balelas mais falsas.

Aceitei que os seus ciúmes pelas minhas conquistas arruinassem qualquer ato de mérito próprio.

Afinal, como ele sustentaria o seu ego?

Fui fiel à sua miséria de espírito, à sua maldita espécie,

cismacho, à sua imaginária superioridade biológica intelectual,

Durante um dia eu fui fiel à missa da socialização silenciadora,

que os media normalizam, que os livros mercantilizam, que a educação reproduz, que a família mantém, que a política continua, que a religião católica diviniza

Mas, hoje, eu sou poeta insubmissa e assisto fiel à missa do macho invejoso.

Notas do quotidiano

Impulso de acolher o amor,

como uma concha que acolhe a maré.

Gastar o tempo com afeto;

corpo grudento, quente e molhado.

Sentir a água penetrar o estômago,

transformando-se em formigueiro vulvar.

O gosto salgado na língua. uma lágrima no canto do olho.

Dolerse: permitir-se afetar-se com a paisagem.

onde corpos, teias e suspiros sensíveis tricoteiam na praça.

Como é bom sentir-me vivo/ Como é bom o sono profundo.

Como é bom sentir-me alegre/ Como é bom o choro entranhado.

saru vidal é a poeta selecionada para a coletânea de fevereiro. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.

Publicado por

Ísis Cunha | Poeta e Assessora de Conteúdo no portal Fazia Poesia faziapoesia.com.br

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