5 poemas tecidos de Salma Soria

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia
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4 min readJun 14, 2023

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Salma Soria é designer de moda, escritora e poeta. Publicou os livros de contos Vestindo a roupa ouvindo a máquina e Muitas roupas aqui, ambos pela editora Penalux. Ganhou o prêmio Rio de Contos. Seu novo livro de poesias, Formas dissimuladas de dizer bom dia, recebeu menção honrosa no prêmio Ufes de literatura e está no prelo. Salma é mestranda em filosofia e mora no Rio de Janeiro.

Me vi aqui, refletindo sobre a confecção de poemas da Salma.

Não é necessário muito para perceber
que a técnica de composição poética
se-mistura-entrelaça-se com seu trabalho na moda.

Não entendo de moda. Nada.

Me visto mal e barato.

“Cuidado com todas as atividades que requerem roupas novas em vez de um novo usuário das roupas.”

Trago algumas poucas máximas do menino Thoreau
em meu subconsciente.
Essa, em especial, ficou saltando em minha mente
enquanto tentava pegar o

fio da

meada

dos poemas que selecionei para esta coletânea.

São cinco poemas curtos. Lendo-os em sequência,
mais uma vez tenho a sensação de que estão todos
unidos, há algo que percorre e se mostra de novo,
e sempre de forma nova, à medida que avançamos.

As técnicas de corte e costura aparecem
como movimento. Ato. Descrição da feitura poética.
Cada poema de estrofe única parece fazer um convite
à reinvenção de quem lê (ou escreve).

Houve um tempo no qual não só as vestimentas, mas também os tecidos, eram feitos no lar. Houve um tempo no qual chineses foram viciados em ópio, para a expansão da venda de tecidos e do maravilhoso livre mercado bretão. Houve um tempo em que poemas e pessoas eram apenas pessoas e poemas. Não indústria. Não produto. Poesias e roupas, uma dança entre o necessário e o vazio. O gesto. O verbo. Para os gregos, as moiras fabricavam-teciam-cortavam o destino de deuses e de homens.

E, por falar em cortar, cito também João Cabral (sim, o Neto.)

Até qual forma é possível trabalhar a forma, mas:

“Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.”

Ao peso, sempre, das mãos
enormes.

Vestidosaiajaquetacalça

Tem dias que não sei o que dizer

nenhuma palavra adianta

aí visto uma roupa

de estranho combinado

e entendo o que queria

extrapolar a palavra

me olhar no espelho

como estranho vernáculo

costurado na roupa testemunha

o invisível da linguagem

Pesponto

Saltam dos dedos

as sirenes das linhas e agulhas

enquanto alinham

sob o tecido recortado

a parede reproduz

a sombra do ato

código roupa fecundada

pespontopespontopesponto

e

arremate

Decote costas

De costas para este poema

vejo a fenda

atiçando o fonema

cócegas

sinto a pena

que rema

aproximando

na margem

flutuando

o esquema

não sei que roupa usar

para esconder

a quina deste tema

corre pela fresta

l e v i t a

gargalhada

cobre a pele

descostura o ponto

recua a bainha

fim da cena: .

Insônia

Debaixo do colchão

um bocejo escorre

na periferia da retina

várias coisas não dormem

tantos caules, folhas murchas

dissidências amorosas

suas fraturas expostas

não pareceriam plantas

outro tempo

senão cama

das nossas sombras?

Tamanho único

Há de se incluir no mundo veste tamanho único

que seu tecido ofereça abrigo seguro

nas dores profundas causadas pelo consumo

[pessoas não são indústrias]

há de se incluir no mundo veste tamanho único

que estampe a rota para o fim das misérias — inúmeras

[pessoas não são indústrias]

há de se incluir no mundo veste tamanho único

que cubra os trabalhadores com dignidades

[pessoas não são indústrias]

há de se incluir no mundo veste tamanho único

que consolide direitos trabalhistas e humanitários

e não a transformem

na moda que envelhece mais a cada estação

[pessoas não são indústrias]

[pessoas não são indústrias]

[pessoas não são indústrias]

Salma Soria é a poeta selecionada para a coletânea de junho. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.

Publicado por

Yuri Lucena | Poeta e Assessor de Conteúdo no portal faziapoesia.com.br

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