5 poemas geomânticos de Yara Fers

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia
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5 min readDec 13, 2023

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Yara Fers escreve seus poemas à mão, em cadernos sem linhas, para ter liberdade de brincar com as palavras, mudar direções e reinventá-las. Mas seu primeiro poema, cometido aos 8 anos de idade, foi em uma máquina de escrever Remington 22, que pertencia ao pai, também poeta. Desde então, a poesia se fez necessária, entrelaçando-se à existência do corpo. O primeiro livro veio ao mundo em 2021, quando completou 38 anos. Hoje já são nove rebentos, entre obras de poesia, romance e infantis. Já possui rugas, mas mantém o costume da infância de brincar com palavras.

“o corpo na areia movediça busca o poema-oásis
costura uma prece necessária
na aspereza da sílaba-súplica
sorve a última saliva onde a síntese se perde”

Durante 2023, minha proposta para as coletâneas foi mais registrar os efeitos da poesia em mim, como poeta e escritor, do que realizar uma tentativa de crítica poética nas poucas linhas que me sobram mensalmente após a reunião da poesia em si. Ditado meu método, sigamos com a última coletânea deste ano.

“Então levou-me em espírito a um deserto”

(Apocalipse 17:3)

Seco áspero
um corte, um rasgo.

Estou (e estamos) diante de uma poesia viva e forte, amigo leitor.
O elemento Terra salta, dos versos para os sentidos, em tema, imagem e estilo.
Há um cheiro de solo, um ar quente soprando, soluços secos e uma fúria que se revela no existir (e escrever) desses poemas. O elemento Terra, dentro da Kabala Hermética (um beijo simbolista pra ti, Mallarmé), contém todos os outros elementos para além do sensível. A escrita da Yara me trouxe justamente essa impressão — ar, água e fogo — dançando e se revelando ao longo das imagens-paisagens-internas-externas criadas e (provavelmente vividas, como se isso importasse) externalizadas nessas linhas.

A terra como reino dos elementos.
A terra que retém, dá e transforma a vida.
A terra como corpo, como texto.
A terra como espaço de manifestação de nosso amor
e fúria.

A terra como mãe, como morte e como guia.

Fica aqui o convite para, como os antigos geomânticos,
buscarmos o divino através do terreno
descobrir a sorte através das imagens que se formam
na poeira

desses dias,
no giro dos grãos
dos anos
dos ciclos da vida
Terrosa e terrena
Sem nos esquecermos da terra
como organização social do trabalho.

“ódio ao novo burguês fascista
pós pós modernista
imprevisto por mário de andrade

ódio ao ódio
ao burguês brasil
que odeia povo”

no sabor quente e úmido da

poesia:

descanso

somos a pausa
fibras musculares estendidas
distendidas

corpos de duas foices-ferramentas
entrelaçados
afiamos nossa fúria
um no outro
em descanso
entre jornadas

pés libertos das botas
uniformes deformados
simbiose de sonhos

sóis se debruçando
no horizonte trigal
entre o suor e o sono

árido

na duna do peito
os brônquios aspiram uma escrita áspera
engulo o gosto seco de uma palavra-angostura
que não desce o esôfago
sente o estio do suco gástrico
a areia da ampulheta arranha as paredes do estômago
desce o digestivo sistema em contagem regressiva
forma um verso-úlcera

o corpo na areia movediça busca o poema-oásis
costura uma prece necessária
na aspereza da sílaba-súplica
sorve a última saliva onde a síntese se perde
(a memória em falhas sinápticas
desencontra a chave do poema nesses saaras
não sei onde deixei aquela sinestesia fresca
a hipérbole úmida
a metáfora água
onde estão meus dromedários?
as chaves das chuvas?)
apenas deserto: soluço seco repetido
falta-me a lágrima que saiba dizer isto

às vezes uma gota me encontra
sinto esta flor ferrugem cactácea
insistente penugem quase alaranjada

:um poema miragem

fluida

eu queria ser sólida
raiz
terra
mas desde a nascente
sou líquida

enraízo-me doce
em afluentes e enseadas
que brotam lentos
leitos venosos e arteriais

já inquietos
meus rios vazam
por olhos
útero
punhos

meus (a)braços líquidos
penetram horizontes:
músculos hidráulicos
dedos e mãos tentaculares
alimentam margens
abraçam mundos
e
finalmente
se lançam aos mares

nisto
sangro e me salgo

mas a dor de minha água
é também subterrânea
freática
untando grutas
e átrios do peito
a delinear estalactites
que perfuram ecos
gota a gota

eu queria ser sólida
sou no máximo
vítrea
a baixas temperaturas

queria meu corpo
dizendo rocha
mas o que sou
incoagulável

diz água

sussurro

ponho os ouvidos no solo
para auscultar
a frequência cardíaca
de dentro da terra

qual o som do núcleo
cozinhando
fritando cebolas
sob a crosta?

qual o som das placas tectônicas
se roçando
sob os continentes?

que som se faz dentro do peito
sob esta pele crocante
que pisamos?

o que ouço
é um canto ancestral
vibrando cordas vocais
de tantas raízes
(estas como mãos enfiadas na carne terrestre)

ouço melodias
de corpos queimados enterrados
como o meu

ouço
este sussurro
de dentro do peito asmático
que me segreda
:somos terra

Ódio ao ódio

eu insulto o burguês
homem de bem
homem de bens
o burguês fascista pseudonacionalista
minha família acima de tudo
eu acima de todos

100 anos depois
mais do que nunca
a poesia é ódio ao burguês

eu insulto o burguês agro pop
o burguês agrotóxico
monocultura de palavras transgênicas
e transfóbicas

o burguês indigesto
pão com leite condensado
— ah, filho, o que te darei pelos teus anos?
— a polícia federal! conto e quinhentos.

mas nós morremos de fome
de vírus, enchentes, feminicídios diários

ódio ao novo burguês fascista
pós pós-modernista
imprevisto por mário de andrade

ódio ao ódio
ao burguês brasil
que odeia povo

come! come-te a ti mesmo
gelatina verde-musgo
purê de fardas mofadas

ódio ao burguês motociata
camisa canarinho
ódio ao verso terraplanista
ao verbo antivacina
burguês boiada
terra arrasada
queimada no pantanal

ódio ao burguês cloroquina
que assassina negros
e viola meninas
com consentimento oficial

fora o novo bom burguês fake news
sua mansão na rede social
seu coach
— trabalhe enquanto eles dormem!
mas ele nunca trabalhou

ódio ao homem de bem
exalando religião
e contradizendo deus

ódio vermelho
fora! fu! fora o novo burguês brasil!
o lirismo de 2022 será libertação!

(Poema em homenagem aos 100 anos da Semana de Arte Moderna no Brasil, em diálogo com a “Ode ao burguês”, do modernista Mário de Andrade)

Yara Fers é a poeta selecionada para a coletânea de dezembro. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.

Publicado por

Yuri Lucena | Poeta e Assessor de Conteúdo no portal faziapoesia.com.br

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