5 poemas acesos de Karina Ripoli

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia
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5 min readMay 17, 2023

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Karina Ripoli (1990) é paulista de berço e brasiliense de coração. Formada em Letras pela Universidade de Brasília (UnB) e mestra em Estudos Literários pela Universidade Complutense de Madri, cursa pós-graduação em Escrita Criativa na PUC Minas. Se diz professora de literatura, designer e mãe de gato. Lançou Palavra de Copo Virado (edição da autora) em 2021 e vocação para naufrágios (Patuá) em 2022. Publica poemas em revistas literárias e colabora com portais de poesia. Já morou em nove cidades. Tem medo do avião, mas não da viagem.

O fisgo
rompe a pele

da linguagem
ou da lógica
o que importa
é

que

temos tua atenção.

De uma simples brincadeira,
de um jogo de palavras
ou na busca de um e outro
ou outra coisa,
a poeta nos traz nesse enlace
que a poesia faz
com a gente (doentia?!?) que gosta
desse tipo
de arte.

Ou na busca do um em outro
ou outra e qualquer coisa.

Recheados de uma exuberante técnica,
os poemas me surpreendem em
tema, ritmo e tato. Há cor, há som
E não sei por quê, me sinto feliz, com um risinho de boca
— concordando com o velho de Campos (Augusto, não o Haroldo) — ,
que está neles o mais necessário na poesia.

Aquele quê de conferir sobre o nada.

Mas de uma forma tão bonita.

São cinco poemas, curtos. Finos e certos.
Camarada leitor,
aprecie o passeio:

“e equilibrando-se
precariamente
nas beiradas do mundo:
descansas teus ossos.”

em preparação para uma guerra

em preparação para uma guerra,
ter em mãos:

um objeto cortante;
foto dos joelhos da criatura amada;
algum trago potente que alivie.

e nos pés,

meias coloridas -
surpreende assim o inimigo nas
trincheiras.

o dedão do pé de clarice lispector

o dedão do pé
de clarice lispector

no retrato que googlei

⠀⠀⠀⠀- juro -⠀⠀⠀⠀

por adoração à arte

era caolho e comprido
encurvado pra dentro

pequeno pastor
arrebanhando
os companheiros
desejoso talvez
de esquentar-se
em outros dedos

clarice se estivesse viva
decerto escreveria
algum conto indagando
quem veio primeiro

o
dedão
e
o

(assim seria chamado)

traduzido para mais de 79 línguas
causando o arrepio dos
raros fios de cabelo
horror imensurável
da comunidade
universitária
internacional

nenhuma resposta jamais bastaria
muito doutor respeitado
definharia diante do enigma

e não seria essa
justamente a graça?

clarice não era uma mulher perfeita
constato ao reparar
no retrato

se faltou,
porém,
foi por um triz

testemunho um dos raros pecados
acompanhando o dedão torto
do lado direito do corpo
um calo maciço
na vereda do pé

o dedão do pé
de clarice lispector
me tomou a consciência de assalto
estampado no teto
em meu quarto
a descortinar-me labiríntico
o delírio da noite
as tortuosas vertigens
do amor

eu também não
sou uma mulher perfeita
trago no corpo mais graves
pecados que um calo

arrisco um passo
sobre os pés bem gastos

mas não fui parar no sanatório
não padeci leituras sem fim
para logo espatifar
uma dúzia de ovos contra
o azulejo imaculado da cozinha
nem treinei a línguas nas
delícias das carapaças
de insetos tropicais

ai,
do tanto que namorei
o retrato googlado
print mental preto e branco
já te sei,
clarice,
de cor(ação)
imponente e descalça
inclinada sobre o vira-lata
o dedão de uma
quase roçando o
outro na pata
e o cão alheio
sem saber sequer
sonhar a própria sorte

clarice,

eu lá sei o que veio primeiro
mas se alguém me
perguntasse eu diria
para mim o dedão
foi o início de tudo

eu diria

visto aqui da minha cama

suspeito

enquanto tento não pegar no sono
nem me acidentar no
desvio brusco
e anguloso do dedo

penso bem e suspeito,
clarice,
que o teu dedão
pra lá de início enviesado
possa ser a cambalhota
da catraca
linha reta metropolitana
sem rodeios de atalho
fundo nas furnas do mundo
corremos juntos pro fim

barroca

pra lá do abismo onde nasce o vento
embalada ao som
da ladainha dos pássaros
e equilibrando-se
precariamente
nas beiradas do mundo:
descansas teus ossos.

faço como a minha avó

faço como a minha avó
uma cadeira na varanda me desdobra o universo
engraçado se o cosmos estivesse feito de macarrão
trançado nas mãos de uma criança estabanada
nossas vontades grudando umas nas outras
tamanho o excesso de cola

faço como a minha avó
afundo a mirada na rua de hoje
mirada profunda na rua que não a de ontem
um vira-lata viajante no tempo me suplica um afago
e eu sei
tenho mais em comum com
o descascado na pintura da vizinha
do que com o café moderno
gentrificando a vizinhança
cafona no espaço do boteco do alemão
onde eu pedia o troco exclusivo em balas cor de laranja
(o alemão freguês constante no bico do corvo
e ninguém nunca acreditou
até o dia solene em que os filhos
baixaram de vez as portas corridas do lugar)

faço como a minha avó
analiso as tripas desproporcionais do edifício que erguem
a ritmo heavy metal bem de frente pra casinha
logo aqui onde viviam os irmãos que
sempre davam de lavada em meu pai no futebol
aqui onde mais tarde a escolinha
muros pintados com passarinhos multicolor
despertar com a algazarra dos pequenos
logo aqui onde o nariz se apurado
já fareja engravatados carregando
a pressa a peso de ouro

faço como a minha avó
há 83 anos
olhar cravado no tempo
o caminhar mais encurvado a cada dia
cultivando simpatias no canteirinho de alecrim
apostando na vida
rindo alto de alvoroçar os pombos

minha avó
monumento maciço
fim de tarde tiritando
no limiar desta varanda ela é o centro do mundo
quão pouco pode a morte junto dela

eu queria uma barriga de mulher

eu queria uma barriga de mulher
uma pança que exista no mundo
de uma mulher que sinta calor e coceiras
e que seja feliz tomando cerveja
contando fofoca
passando raiva do governo
uma barriga marcada por dobrinhas
estrias, cicatrizes
que eu adivinhe com a língua
alguns pelinhos que me guiem o caminho
um abdômen quente
um bucho digno
e injustiçado
de mulher
um que se expanda e contraia
não por vontade própria
mas de acordo com a respiração
da dona
afinal desejar o ventre é também
cobiçar aquela que a ele vem atrelada
e essa carência é uma fome primitiva
miséria minha que nasce e morre na barriga

(quase me esqueço de falar do umbigo:
é aconselhável deixá-lo em paz -
isso eu aprendi
da maneira mais cruel)

quisera eu uma barriga de mulher
onde pudesse deitar a cabeça exausta
e ouvir o espancar asa das borboletas

Karina Ripoli é a poeta selecionada para a coletânea de maio. Para acessar as outras edições, basta clicar aqui.

Publicado por

Yuri Lucena | Poeta e Assessor de Conteúdo no portal faziapoesia.com.br

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